15 Março 2015

 

Dia Internacional contra a Brutalidade Policial

 

O mundo assinala domingo, 15 de março, o Dia Internacional contra a Brutalidade Policial – e numa comunidade do nordeste do Brasil, o medo e a indignação transbordam depois de 12 homens terem sido mortos pela polícia. O perito em direitos humanos da Amnistia Internacional Brasil Alexandre Ciconello conta o que se sente por estes dias em Cabula.

“Quando Natanael, de 17 anos, não voltou a casa, no bairro de Cabula, em Salvador da Baía, depois de uma saída à noite com a namorada, a sua avó, Marina Lima, não ficou muito preocupada. Pensou que o adolescente teria ficado com a namorada.

Mas na manhã seguinte, um vizinho bateu-lhe à porta para lhe entregar o boné do rapaz. E ela percebeu que o pior tinha acontecido.

Enfrentou então o seu pior pesadelo: na morgue, viu o corpo do neto, crivado de ferimentos de balas, o pescoço e um braço partidos.

Natanael foi um dos 12 mortos pela polícia militar há seis semanas, a 6 de fevereiro, em Salvador da Baía, a maior cidade do nordeste do Brasil.

A versão oficial dos acontecimentos daquela noite descreve que os 12 homens estavam a preparar-se para assaltar um banco e a polícia disparou contra eles em legítima defesa.

Mas a ausência de uma investigação adequada, a par dos relatos de várias testemunhas oculares, sugerem algo muito diferente.

‘Os meus impostos pagaram a bala que matou o meu neto’, diz a avó do adolescente.

Este trágico incidente devia ter chocado todo o Brasil. Mas não chocou.

Em vez disso, o governador do estado da Baía, Rui Costa, enviou uma mensagem aos ‘corajosos’ polícias, louvando o seu trabalho ‘heróico’: ‘É como quando um atacante está em frente da bola a tentar decidir, em segundos, como vai fazer golo. Quando marca, todos os adeptos nas bancadas batem palmas e o momento é repetido várias vezes na televisão. Mas se ele não marca o golo, é prontamente condenado pelo seu fracasso’, afirmou o governador depois do incidente de 6 de fevereiro, do qual resultou a morte de 12 pessoas.

Esta insensata comparação feita pelo governador, de uma chacina com um emocionante jogo de futebol, constitui uma triste ilustração dos problemas de segurança pública que continuam a existir no Brasil – onde são os jovens negros e pobres que, em maioria, pagam o preço dos atos de uma força policial violenta, militarizada e parcamente treinada, e que se mantém impune há demasiado tempo.

Cheguei a Cabula uns dias depois das mortes e fui confrontado com uma mistura estranha de horror, medo e desafio.

As ruas, apinhadas de pequenas lojas e escolas, bancos e uma universidade, fervilhavam de atividade. O local tem imensas crianças a correrem de um lado para o outro, e que usam o terreno baldio da comunidade como campo de futebol.

Os familiares dos 12 mortos pela polícia estavam tão assustados que nem sequer me quiseram dizer os seus nomes. Sentiam-se tristes, indignados e intimidados, mas também com medo do que a polícia lhes poderia fazer se falassem.

Tendo testemunhado e documentado casos similares na conduta da polícia em todo o Brasil, infelizmente não me surpreendi com o que estava a ouvir. A polícia no Brasil mata e é morta em números muito elevados, em consequência direta de uma suposta guerra às drogas que acaba por criminalizar os pobres enquanto a polícia recorre à brutalidade.

Os números oficiais do Anuário de 2014 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que pelo menos seis pessoas são mortas pela polícia todos os dias no país. E apesar de chocante, este número é muito provavelmente uma estimativa por baixo, uma vez que a maior parte dos estados do Brasil prefere manter estas alarmantes estatísticas longe do escrutínio público.

No Brasil é um enorme risco até apresentar queixa da conduta brutal da polícia, como eu mesmo tive a experiência quando me juntei a uma manifestação de membros da comunidade de Cabula e organizações da sociedade civil de Salvador da Baía, que marchavam num protesto pacífico exigindo justiça.

Durante esta manifestação, fomos seguidos por um polícia numa moto, o qual, a certa altura, parou junto a mim e me perguntou o que eu estava ali a fazer. Os defensores de direitos humanos são frequentemente perseguidos e intimidados, e até depois de termos reportado este incidente à polícia nada foi feito, ninguém pôs em marcha qualquer procedimento.

Após o protesto, visitei o local onde as mortes dos 12 homens ocorreram cinco dias antes. O que aí vi chocou-me profundamente. A cena do crime não tinha sido preservada; as luvas dos técnicos, assim como as roupas dos mortos e seus pertences permaneciam espalhados. Até cartuchos de balas disparadas ainda havia no chão.

Finalmente os apelos por justiça dos familiares dos 12 mortos começaram a ser ouvidos e, recentemente, as autoridades estaduais da Baía garantiram que as mortes de 6 de fevereiro estão a ser investigadas.

Mas nós já ouvimos isto muitas vezes antes, sem que algo tenha sido feito.

Os responsáveis por mortes resultantes de brutalidade policial só são julgados em média nuns escassos 5 a 8 por cento dos casos no Brasil. E isto significa que, na esmagadora maioria dos casos, os que tiveram responsabilidade nas mortes nunca são investigados, e quando identificados como responsáveis não são punidos – alimentando assim o ciclo de violência e impunidade.

No caso de Cabula, os polícias que dispararam os tiros continuam a trabalhar numa comunidade que vive imersa no terror, questionando-se sobre quem vai ser a próxima vítima. As autoridades têm de encetar prontamente uma investigação completa, independente e imparcial aos incidentes de 6 de fevereiro naquela comunidade, e suspender os polícias suspeitos até que essa investigação seja concluída.

Quanto tempo mais vai ser preciso para que as autoridades brasileiras acordem para a realidade destes horrores e ajam de verdade? São as vidas de milhares de pessoas – muitas deles jovens negros – que estão em risco.

 

Junte-se à Amnistia Internacional no apelo às autoridades brasileiras para que seja feita uma investigação aos incidentes de 6 de fevereiro em Cabula que resultaram na morte de 12 pessoas por tiros da polícia. Assine a petição que exige justiça!

Este artigo foi originalmente publicado no Huffington Post.

 

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