11 Outubro 2022

 

  • A situação de realojamento do bairro do Segundo Torrão tem sido abordada com pouca transparência junto dos moradores, visível numa comunicação pouco clara por parte da Câmara Municipal de Almada e na falta de soluções concretas e dignas para as famílias do Segundo Torrão, que estejam de acordo com o respeito pelos seus direitos humanos. A confusão na gestão e condução de todo o processo está a afetar sobretudo mulheres, crianças e idosos.

 

Após o dia 30 de setembro, aquele que foi estabelecido como a data-limite para muitas famílias saírem das casas que habitam no bairro do Segundo Torrão, há moradores que permanecem sem ver as suas preocupações e especificidades do seu agregado familiar serem devidamente analisadas e tidas em conta no processo de realojamento temporário conduzido pela Câmara Municipal de Almada (CMA). A Amnistia Internacional – Portugal ouviu testemunhos de moradores que referem a descoordenação, a falta de empatia e a inexistência de uma comunicação efetiva e transparente pela CMA como os maiores desafios para o encontro de soluções concretas e dignas. Houve testemunhos de moradores que mencionaram que alguns técnicos e um diretor de serviços no bairro se recusavam a falar com as pessoas.

A Amnistia Internacional continua a acompanhar a situação das cerca de uma dezena de famílias que, embora estejam notificadas para saírem das suas casas, permanecem no Bairro do Segundo Torrão, seguindo atenta aos desenvolvimentos referentes ao seu realojamento, já que existem moradores com grande receio do futuro e com a sensação de que não são convenientemente informados e ouvidos.

Bairro do Segundo Torrão, 30 de setembro de 2022. Créditos: Amnistia Internacional – Portugal

 

“Pedir às pessoas que saiam das casas onde vivem é um processo complexo e não pode ser encarado como se de uma mudança sem importância se tratasse. Esta mudança impactará toda a vida destas famílias e é por essa razão que é urgente abordá-la com respeito, dignidade, clareza e transparência, para que estas famílias não se enraízem mais na situação de pobreza que já enfrentam e os seus desafios do dia-a-dia aumentem”, destaca Pedro A. Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional – Portugal.

“Pedir às pessoas que saiam das casas onde vivem é um processo complexo e não pode ser encarado como se de uma mudança sem importância se tratasse”

Pedro A. Neto

Os testemunhos partilhados com a Amnistia Internacional sublinham, uma vez mais, o pouco cuidado prestado pela CMA na análise que efetua ao agregado familiar e à situação específica de cada morador/família. Um dos relatos é referente à situação de uma família, onde uma mulher grávida expõe a sua preocupação por não ter a garantia se o seu agregado familiar vai, ou não, ser inteiramente incluído no processo de realojamento. Numa fase que é também de planeamento para a chegada do bebé, persiste nesta mulher a apreensão de uma possível separação familiar, motivada por atitudes que descreve como intimidatórias, quer dos serviços camarários, quer da Segurança Social.

Numa fase que é também de planeamento para a chegada do bebé, persiste nesta mulher a apreensão de uma possível separação familiar, motivada por atitudes que descreve como intimidatórias, quer dos serviços camarários, quer da Segurança Social

Em comunicado emitido a 30 de setembro, a organização já tinha apelado para que fosse realizada uma avaliação individual de cada família, capaz de determinar se existiam questões intrínsecas ao agregado que merecessem ser consideradas para o realojamento, nomeadamente referentes ao aumento do agregado ou à sua situação legal. A Amnistia Internacional reitera agora o pedido para que as fragilidades destas famílias não sejam exploradas, mas que sejam olhadas com empatia, humanidade e respeito.

Nos relatos partilhados, a falta de empatia e de diálogo construtivo por parte da CMA é um aspeto referido, não só no decorrer do processo, como no próprio momento de demolição das casas. Uma moradora, que estava excluída do realojamento mas cuja casa onde habitava se encontrava sinalizada para ser demolida, sentiu-se mal no dia da demolição da casa, quando toda a equipa da CMA, GNR e proteção civil se dirigiu ao imóvel. Teve de ser transportada para o hospital e ficou internada nesse dia e manhã seguinte. Apesar da CMA ter aceitado os apelos para que a demolição não fosse concretizada no próprio dia devido aos problemas de saúde, pressionou para que o procedimento fosse concluído na manhã subsequente, tendo a moradora acedido. No dia seguinte, de manhã, a CMA voltou à casa onde esta mulher vivia, tendo sido a sua sobrinha a fazer a mudança sozinha, retirando os pertences de todos os que ali moravam. A celeridade exigida pela CMA, sem tempo de preparação concedido às famílias, fez com que esta mulher- a adulta que sustenta o seu agregado familiar – perdesse o seu passaporte e outra documentação importante dos seus entes.

A celeridade exigida pela CMA, sem tempo de preparação concedido às famílias, fez com que esta mulher- a adulta que sustenta o seu agregado familiar – perdesse o seu passaporte e outra documentação importante dos seus entes

As famílias do Bairro do Segundo Torrão, 30 de setembro de 2022. Créditos: Amnistia Internacional – Portugal

 

A falta de sensibilidade para com as famílias é percecionada no relato de outro caso de duas mulheres – uma mãe com problemas de mobilidade e uma filha com um problema oncológico e incapacidade de 73% – que também não estão integradas no realojamento, mas a casa onde vivem é uma das que a CMA indicou ser necessária demolir. De acordo com os seus relatos, a CMA assegurou a estas duas mulheres que seguiriam para uma instituição, mencionando que o estabelecimento teria algumas regras: “Não disseram as regras. Eu não cheguei a perguntar. Mas não pensei que fosse uma coisa tão dura como eu vi”, detalha uma das mulheres visadas. As mulheres afirmam que, apesar dos apelos que dizem ter feito à CMA, nunca lhes foi fornecida a documentação que deixava registada a solução encontrada pela autarquia. Ainda assim, confiando na CMA, empacotaram os seus pertencentes para que fossem levados para o armazém da Câmara e foram conduzidas para o estabelecimento que lhes tinha sido proposto, que era afinal uma instituição de reinserção social.

“Não disseram as regras. Eu não cheguei a perguntar. Mas não pensei que fosse uma coisa tão dura como eu vi”

Relato de uma mulher visada

Segundo a mulher visada, as regras incluíam acordar às 7h30, sair do estabelecimento só a partir das 13h e voltar no máximo às 20h, não trazer comida para dentro da instituição – as refeições eram todas fornecidas no local -, e não dormir com o telemóvel que deveria ser entregue até às 22h50. Quando questionaram sobre a possibilidade de manterem a sua rotina, da qual faziam parte consultas médicas, as moradoras relataram ter sido informadas de que, para estas deslocações, eram requeridos os respetivos comprovativos de presença: “Nesse caso, decidi voltar a casa. Não dormi lá”, refere uma das mulheres.

No regresso ao bairro e com a casa vazia, a pobreza que já existia, acentuou-se: “[Nessa noite] dormimos no chão, continuamos a dormir no chão”. Atualmente sem fogão, máquina de lavar, cobertores, roupas, mesa, cadeiras, televisão ou toalhas, as duas continuam à espera de uma solução pela qual garantem que nem a CMA, nem a Segurança Social se encarregam, descartando a responsabilidade de entidade para entidade. De acordo com os seus relatos, caso sejam obrigadas a sair da casa onde estão e a encontrar uma nova habitação por sua conta, os rendimentos que têm disponíveis – tendo em conta o contexto de inflação atual, assim como todo o conjunto de despesas básicas mensais, onde se incluem os cuidados médicos para ambas -, são insuficientes.

Dormimos no chão, continuamos a dormir no chão

Relato de uma mulher visada

Os testemunhos que analisámos são consistentes quanto à pouca compreensão e sensibilidade que a CMA tem dispensado às famílias visadas. A súbita rapidez que impõem às pessoas para desimpedirem as casas onde habitam, tem criado situações evitáveis de medo e ansiedade para os moradores. A postura adotada pela CMA, como se não houvesse tempo a perder, não é cuidadosa nem ponderada, e reflete um distanciamento e desrespeito pelos direitos humanos destas famílias”, evidencia Pedro A. Neto.

“A postura adotada pela CMA, como se não houvesse tempo a perder, não é cuidadosa nem ponderada, e reflete um distanciamento e desrespeito pelos direitos humanos destas famílias”

Pedro A. Neto

Outra preocupação relevada nos testemunhos a que a Amnistia Internacional – Portugal teve acesso foi a falta de compreensão pelo tempo que a conclusão de um processo de regularização e a emissão de toda a documentação pode levar. “Se dependesse de nós, a gente já conseguiria [a documentação em falta para alguns membros da família]. Uma pessoa fica sem saber o que fazer. […] Estou a tratar de tudo, mas uma coisa de cada vez”, refere uma das moradoras que partilhou o seu testemunho, revelando a frustração da dificuldade de tratar de todas as burocracias exigidas. Pelos diversos testemunhos de moradores, a Amnistia Internacional deteta um padrão de atuação por parte da CMA que exclui famílias do processo de realojamento e se escuda em questões burocráticas, erros processuais, entre outras razões, que não justificam o facto de a CMA não atender à situação de emergência humanitária que afirma existir no local e ao que a própria CMA, publicamente e em diversas ocasiões, afirmou que haveria solução [adequada] para todas as pessoas.

 

Casas já demolidas no Bairro do Segundo Torrão, 30 de setembro de 2022. Créditos: Amnistia Internacional – Portugal

 

Os relatos mencionam também alguma falta de agilidade por parte da CMA na gestão de questões pendentes de regularização de algumas famílias, nomeadamente referentes às Finanças e Segurança Social, com uma moradora a afirmar que teve de enviar pelo menos duas vezes a documentação pedida porque a CMA insistia não ter recebido o seu envio de informação, tendo, no entanto, esta entidade conferido posteriormente a situação e pedido desculpa pelo sucedido à moradora em causa.

Tendo em conta as inquietações partilhadas, a Amnistia Internacional renova o seu apelo para que o processo de realojamento das famílias visadas no Bairro do Segundo Torrão seja fundamentado num diálogo franco e esclarecedor da CMA para com a comunidade. A organização pede ainda à CMA que não se escuse estritamente na lei e burocracia para não dar atenção devida às famílias que ficam em situação de enorme vulnerabilidade humanitária. Por último, reitera a necessidade de os moradores serem informados de cada etapa do processo de forma atempada e clara e que, em nenhum momento, sejam obrigados a partir sem uma solução que respeite os seus direitos humanos, a sua dignidade e a sua vida. Ninguém deve ser coagido a aceitar uma proposta apenas por receio de represálias que possam surgir após rejeição da mesma.

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