5 Maio 2015

 

É uma existência de puro terror e sofrimento insuportável: muitos civis de Alepo, segunda maior cidade da Síria, veem-se forçados a viver com praticamente nada em caves, bunkers e toda a espécie de abrigos subterrâneos para escaparem com vida aos imparáveis bombardeamentos aéreos feitos pelas forças governamentais contra as zonas do país que se encontram sob o controlo dos grupos da oposição, é revelado em novo relatório da Amnistia Internacional.

Death everywhere: War crimes and human rights abuses in Aleppo” (A morte por todo o lado: crimes de guerra e abusos de direitos humanos em Alepo) detalha os horríveis crimes de guerra e outros abusos que estão a ser cometidos todos os dias naquela cidade pelas forças governamentais e por grupos armados da oposição. A investigação conclui que algumas das ações das forças leais ao Governo sírio em Alepo configuram crimes contra a humanidade.

O novo relatório, publicado esta terça-feira, 5 de maio, pinta um retrato especialmente angustiante da devastação e derramamento de sangue provocados pelas bombas-barris (barrel bombs, barris de aço que explodem com munições e fragmentos de metal no interior) disparadas contra escolas, hospitais, mesquitas e mercados. Muitas instalações hospitalares e escolas funcionam agora, em busca de segurança, nas caves de edifícios e em abrigos subterrâneos.

“As atrocidades cometidas em larga escala, e, em particular, os constantes e viciosos bombardeamentos aéreos dos bairros civis pelas forças governamentais, tornaram a vida da população de Alepo cada vez mais insuportável. Estes ataques contínuos e condenáveis sobre as áreas residenciais apontam para a existência de uma política de tornar os civis em alvos de forma deliberada e sistemática – o que constitui crimes de guerra e crimes contra a humanidade”, avalia o diretor da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África, Philip Luther.

O perito da organização de direitos humanos frisa ainda que “ao atacar deliberada e continuamente os civis, o Governo sírio parece ter adotado uma política insensível de punição coletiva contra a população civil de Alepo”.

Ataques com bombas-barris pelas forças governamentais

Os ataques em que são lançadas de helicópteros bombas-barris (barris de petróleo, de combustíveis e botijas de gás cheias com materiais explosivos, munições e fragmentos de metal) mataram mais de 3.000 civis em Alepo no ano passado e mais de 11.000 em toda a Síria desde 2012.

Ativistas locais registaram a ocorrência de pelo menos 85 ataques com bombas-barris em Alepo apenas no mês passado, nos quais morreram pelo menos 110 civis.

Porém, o Governo sírio recusa-se a admitir que civis tenham morrido devido a estes bombardeamentos, tendo o Presidente, Bashar al-Assad, negado categoricamente o uso de bombas-barris pelas forças governamentais numa entrevista em fevereiro de 2015.

Sobreviventes dos oito ataques com bombas-barris que são documentados neste relatório da Amnistia Internacional descrevem cenas pungentes de carnificina no rescaldo das explosões, deixando bem claro o verdadeiro horror causado por tais bombardeamentos.

“Vi crianças sem a cabeça, partes de corpos por todo o lado. É assim que imagino que seja o inferno”, contou um operário fabril de Alepo sobre o ataque ao bairro de Al-Fardous em 2014.

Um cirurgião da cidade reportou que a gravidade dos ferimentos que viu provocados pela explosão das bombas-barris não tem precedentes: “As bombas-barris são a arma mais horrível e danosa… [O que vemos são] traumas múltiplos, tantas amputações, intestinos saídos do corpo, é horrível demais”, descreveu.

Um ataque com bombas-barris atingiu um mercado no populoso bairro de Sukkari em junho de 2014, numa altura em que pelo menos 150 pessoas faziam fila para receberem cestas de alimentos distribuídos por uma agência de ajuda humanitária. Uma testemunha descreveu o rescaldo da explosão como “puro terror”, sustentando que aquele ataque tinha claramente tido os civis como alvo: “O homem que tinha a loja de gelados, o homem da loja de sandes, o homem da loja de brinquedos… Foram todos mortos”.

Este novo relatório da Amnistia Internacional pormenoriza também o sofrimento atroz que os civis vivem sob a sombra desta terrível e persistente ameaça.

“Não vemos o sol, não há ar fresco, não subimos ao exterior e há sempre aviões e helicópteros a sobrevoar-nos”, descreveu um médico que trabalha num dos hospitais de campanha forçados a funcionar nas caves. “Estamos sempre ansiosos, sempre preocupados, sempre de olhos postos nos céus”, avançou por seu lado um professor de Alepo.

Um outro habitante da cidade descreveu Alepo como um “círculo do inferno”. “As ruas estão cheias de sangue. As pessoas que foram mortas não são as pessoas que estavam a combater”, assegura.

Comunidade internacional de costas voltadas aos civis

O diretor da Amnistia Internacional para a região do Médio Oriente e Norte de África considera que “o medo e o desespero da população de Alepo são claros e muitos civis sentem-se abandonados, perderam toda a esperança no futuro”.

“Há mais de um ano, as Nações Unidas aprovaram uma resolução instando ao fim dos abusos de direitos humanos [na Síria] e, especificamente, ao fim da utilização de bombas-barris, prometendo mesmo que haveria consequências se o Governo o não cumprisse. E agora, a comunidade internacional tem as costas voltadas aos civis de Alepo, numa mostra de fria indiferença perante a crescente tragédia humana”, prossegue o perito.

Philip Luther sustenta que “a contínua inação [da comunidade internacional] está a ser interpretada por aqueles que cometem crimes de guerra e crimes contra a humanidade como um sinal de que podem continuar a manter os civis de Alepo reféns, sem receio de qualquer consequência”. “Uma intervenção do Tribunal Penal Internacional na situação da Síria poderia enviar a mensagem de que quem dá ordens e quem comete estes crimes pode ser julgado e isso ajudaria a refrear a escalada de abusos”, defende.

Além das bombas-barris, o relatório documenta também três ataques com mísseis feitos pelas forças governamentais, incluindo o raide devastador contra uma exposição de arte das crianças da Escola Ain Jalut, em abril de 2014. “Vi coisas que não consigo sequer descrever. Havia pedaços dos corpos das crianças por todo o lado, sangue por todo o lado. Os corpos estavam despedaçados”, contou um professor de Geografia que testemunhou este ataque.

A Amnistia Internacional urge todas as partes envolvidas no conflito na Síria a porem fim aos ataques deliberados contra a população civil e contra edifícios e infraestruturas civis, assim como ao uso de armamento explosivo sem precisão como é o caso das bombas-barris e morteiros sobre zonas povoadas.

Abusos cometidos pelos grupos armados da oposição

Os grupos armados da oposição em Alepo também cometeram crimes de guerra ao usarem armas sem precisão como morteiros e rockets improvisados em botijas de gás (conhecidos como hell cannons, canhões do inferno) em ataques que mataram pelo menos 600 civis em 2014.

Habitantes da cidade descreveram à Amnistia Internacional que estes ataques perpetrados pelos grupos armados da oposição são frequentemente feitos de forma “totalmente aleatória”. “Nunca nos sentimos em segurança, a salvo, nunca. Nunca sabemos… podemos ser atingidos a qualquer momento”, contou um residente do bairro de Al-Jamaliya.

Tortura e outros abusos

O novo relatório documenta ainda a prática generalizada de tortura, detenções arbitrárias e raptos cometidos tanto pelas forças governamentais como por grupos armados da oposição.

Um ativista que esteve sob detenção das forças leais ao Governo em 2012, por ter filmado um protesto, reportou ter sido enfiado e imobilizado num pneu, espancado com cabos que rasgam a pele e recordou os gritos de outros detidos a serem torturados.

“Por volta das 5h ou 6h ouviam-se as mulheres a gritar. Às 7h, os gritos delas paravam, e então ouviam-se os gritos dos homens. A gritaria estava programada”, explicou. Este ativista pacífico esteve detido na Prisão Central de Alepo, cujo edifício foi bombardeado por ambos os lados no conflito e onde centenas de prisioneiros passaram fome e alguns foram sumariamente executados.

Um homem capturado por um grupo armado da oposição em Alepo descreveu, por seu lado, ter sido brutalmente espancado, sujeito a choques elétricos e pendurado pelos pulsos durante longos períodos de tempo.

A Amnistia Internacional insta o Governo sírio a parar as detenções arbitrárias e os desaparecimentos forçados, e os grupos armados a porem fim também aos raptos de civis e à tomada de reféns. Todas as partes envolvidas neste conflito têm de acabar com a prática de tortura e outros maus-tratos e devem tratar os detidos humanamente.

Acesso da ajuda humanitária

Além de enfrentar os brutais ataques cometidos por ambos os lados, a população de Alepo vive em condições extremamente difíceis, lutando todos os dias para conseguir obter o mais básico – alimentos, medicamentos, água e eletricidade.

Nas zonas sob controlo dos grupos da oposição, os alimentos são muito caros e os habitantes têm recorrido ao plantio das suas próprias pequenas hortas e criam coelhos e gatos que se tornaram na “fast food de Alepo”, segundo descreveu um residente da cidade.

A Amnistia Internacional urge, assim, que todas as partes neste conflito permitam o acesso sem quaisquer limitações às agências que distribuem ajuda humanitária não apenas a Alepo mas em toda a Síria.

 

Em março passado, a Amnistia Internacional, numa investigação conjunta com outras organizações de direitos humanos e humanitárias, revelou imagens satélite de 2011 e de 2015 da Síria que demonstram que, nos já mais de quatro anos de conflito, mais de 83% das luzes no país se extinguiram. É imperioso pôr fim a esta escuridão. Assine a petição e fortaleça este pedido junto dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas para que façam todos os esforços para acender de novo as luzes na Síria!

 

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