14 Novembro 2023

A Amnistia Internacional alerta que o governo do Paquistão deve terminar, de imediato, com as contínuas detenções, deportações e perseguições generalizadas de refugiados afegãos. Livia Saccardi, diretora regional adjunta da Amnistia Internacional para as Campanhas no Sul da Ásia, explica como esta atuação repressiva tem colocado a vida da população afegã em risco:

“Milhares de refugiados afegãos estão a ser usados como peões políticos para serem devolvidos ao Afeganistão controlado pelos talibãs, onde a sua vida e integridade física podem ficar em risco, devido à intensificação da repressão dos direitos humanos e de uma catástrofe humanitária em curso. Ninguém deveria ser alvo de deportações forçadas massivas e o Paquistão faria bem em recordar as suas obrigações legais internacionais, como o princípio do non-refoulement (não-repulsão)”.

“Ninguém deveria ser alvo de deportações forçadas massivas e o Paquistão faria bem em recordar as suas obrigações legais internacionais”

Livia Saccardi

Livia Saccardi reforça que “se o governo paquistanês não suspender imediatamente as deportações estará a negar a milhares de afegãos em risco, em especial mulheres e raparigas, o acesso à segurança, à educação e aos meios de subsistência”.

Desde 17 de setembro, segundo o governo paquistanês, mais de 170.000 afegãos – muitos dos quais vivem no Paquistão há décadas – abandonaram o país, quando o governo lançou um ultimato a todos os “estrangeiros não registados” para que saíssem do Paquistão. Desde que o prazo de 1 de novembro imposto pelo governo expirou, as autoridades deixaram de registar casos ao abrigo da Lei dos Estrangeiros de 1946 que, entre outras coisas, criminaliza a entrada ilegal no Paquistão, passando a deter diretamente os refugiados considerados “ilegais” em centros de deportação.

A Amnistia Internacional mostra-se preocupada com a total ausência de responsabilidade, de transparência e de um processo justo nas detenções e deportações das últimas semanas. Além disto, os refugiados afegãos no Paquistão têm ainda enfrentado um aumento de situações de assédio e violência.

 

Falta de informação sobre as próprias famílias

O governo paquistanês afirma terem sido criados 49 centros de deportação (também designados por centros de “detenção” ou de “trânsito”) em todo o país, afirmando poderem existir mais. Estes centros de deportação não foram construídos ao abrigo de uma legislação específica e funcionam paralelamente ao sistema jurídico. A Amnistia Internacional verificou que, em pelo menos sete destes centros, não são concedidos direitos legais aos detidos, como o direito a um terem um advogado ou a comunicarem com familiares. São espaços que violam o direito à liberdade e a um julgamento justo. Além disso, como nenhuma informação é tornada pública, as famílias dificilmente conseguem localizar os seus entes queridos.

Maryam*, uma ativista afegã em Islamabad, partilhou à Amnistia Internacional que, a 2 de novembro, vários refugiados afegãos foram detidos na esquadra da polícia de Shalimar e “os que não tinham documentos foram enviados para deportação, sem que os seus familiares recebessem qualquer informação sobre o local para onde foram levados ou quando seriam deportados”.

Outro caso foi o de um jovem de 17 anos, detido numa rusga em Sohrab Goth (na cidade de Karachi) a 3 de novembro. Este jovem nasceu no Paquistão e possuía um cartão de prova de registo emitido pelo Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Apesar de ser menor de idade, a sua família não teve acesso ao centro de detenção e o jovem foi deportado no dia seguinte. O seu paradeiro exato permanece desconhecido.

A Amnistia Internacional confirmou junto de jornalistas de todo o Paquistão que os órgãos de comunicação social também não tiveram acesso a estes centros, o que coloca questões de transparência.

Junaid*, um refugiado afegão que esteve detido mais de quatro horas no centro de detenção de Khayaban-i-Sir Syed, em Islamabad, no dia 3 de novembro, revelou haver falta de tradutores no centro capazes de comunicar em dari ou pachto, o que dificultava a compreensão de questões complexas de documentação por parte dos detidos.

 

Vivemos em constante ansiedade

“Há um sentimento de medo entre a comunidade afegã… vivemos em constante ansiedade, fechamos as portas assim que ouvimos carros da polícia na zona”, sublinha Junaid.

A Amnistia Internacional foi igualmente informada de vários casos de assédio. Pelo menos 12 proprietários de pequenos negócios, que tinham cartões de cidadania afegã válidos, foram detidos durante mais de 24 horas no dia 1 de novembro nas esquadras de polícia de Nishtar Colony e Garden Town, na cidade de Lahore. Todos eles sem terem sido levados a tribunal ou sem terem recebido um Primeiro Relatório de Informação (FIR) contra si. A 24 de outubro, comerciantes afegãos em Akbari Mandi, também em Lahore, foram revistados por indivíduos à paisana que se diziam agentes da polícia à procura de documentação e que acabaram por lhes confiscar 500.000 rupias.

Comerciantes afegãos foram revistados por indivíduos à paisana que se diziam agentes da polícia à procura de documentação e que acabaram por lhes confiscar 500.000 rupias

Desde o fim do prazo de 1 de novembro imposto pelo governo, foram comunicados avisos através de folhetos, altifalantes nas mesquitas locais e declarações de que qualquer pessoa que fosse encontrada a providenciar alojamento a refugiados afegãos sem documentação seria multada ou presa. Farah*, uma jornalista que vive em Peshawar, declarou que, embora a maioria dos afegãos esteja a ser rejeitada, “os senhorios que estão a oferecer concessões estão a cobrar cinco vezes mais do que a renda que normalmente cobrariam”.

Desde o início de outubro, a Autoridade para o Desenvolvimento da Capital (CDA), em Islamabad, demoliu vários katchi abadis (aglomerados informais) onde viviam refugiados afegãos. Estas demolições foram efetuadas à luz de processos pouco justos e sem avisos prévio, uma vez que os assentamentos informais têm direitos de propriedade limitados, o que resultou na destruição de casas com os seus bens ainda no interior.

 

‘Tenho a certeza de que serei morto se regressar’

Há cerca de 200 jornalistas afegãos em risco no Paquistão, de acordo com o Fórum Internacional de Jornalistas Paquistanês-Afegão. Asad*, um jornalista afegão que se encontra escondido no Paquistão desde a tomada do poder pelos talibãs em 2021, partilhou à Amnistia Internacionalu: “Apesar de ter entrado no Paquistão com um visto válido e de ter pedido a sua renovação, não tenho nada para mostrar às autoridades se estas aparecerem à minha porta. Deixei de mandar os meus filhos à escola nas últimas duas semanas…”

Asad e a sua família fugiram do Afeganistão em 2021, quando os seus amigos e colegas foram assassinados após a subida ao poder dos talibãs. “Estou em várias listas mantidas pelos talibãs e tenho a certeza de que serei morto se regressar”, afirmou.

“Estou em várias listas mantidas pelos talibãs e tenho a certeza de que serei morto se regressar”

jornalista afegão

Muitas mulheres nos colonatos de maioria afegã vivem numa ansiedade extrema e constante. A advogada de direitos humanos Moniza Kakar, que representa casos de refugiados afegãos em Karachi, disse que “muitas mulheres dormem completamente cobertas (com véus) com medo de rusgas policiais noturnas por parte de agentes da polícia masculinos”.

As mulheres paquistanesas casadas com refugiados afegãos enfrentam igualmente riscos acrescidos de deportação, devido à falta de documentação adequada. Devido às barreiras culturais e económicas existentes no Paquistão, é frequente as mulheres não terem acesso ao Cartão Nacional de Identidade Computadorizado (CNIC), o que faz com que exista uma diferença de 10 milhões de homens e mulheres nos cadernos eleitorais.

Há mais de dois anos que a Amnistia Internacional tem vindo a documentar a repressão violenta e sistémica dos direitos das mulheres e das raparigas pelos Talibãs. Os refugiados afegãos que pertencem a minorias religiosas enfrentam desafios interseccionais acrescidos no contexto das deportações, com a dupla ameaça de perseguição se o seu regresso se verificar. Um ativista que trabalha com as comunidades cristãs refugiadas em Islamabad – de nome Chaman e Quetta – contou que um abrigo que albergava uma dúzia de famílias cristãs refugiadas foi forçado a encerrar após rusgas policiais.

“O Paquistão tem de cumprir as suas obrigações ao abrigo do direito internacional em matéria de direitos humanos para garantir a segurança e o bem-estar dos refugiados afegãos dentro das suas fronteiras e suspender imediatamente as deportações para evitar uma nova escalada desta crise. O governo, juntamente com o ACNUR, deve acelerar o registo dos requerentes que procuram refúgio no país, em especial mulheres e raparigas, jornalistas e pessoas pertencentes a comunidades minoritárias e étnicas, uma vez que estes enfrentam riscos acrescidos”, conclui Livia Saccardi.

*Nomes alterados para proteger a identidade

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