Em 2020, um vírus atravessou fronteiras e mudou o mundo inteiro criando tempos excecionais.
Estaremos à altura do desafio?
No relatório 2020 – O Estado dos Direitos Humanos no Mundo, revelamos como, ao longo do ano, assistimos à forma como a pandemia agravou as desigualdades pré-existentes. Como consequência de fracos investimentos em sistemas e infraestruturas de saúde pública, pouca cooperação internacional e décadas de injustiças, muitas com raízes na discriminação com base na raça, no género, ou outras que frequentemente se intersetaram, assistimos à forma como grupos específicos da nossa sociedade se tornaram particularmente vulneráveis ao contexto global.
Graças a estas pessoas, 2020 foi também um ano de muitas vitórias para os direitos humanos.
O Ano em imagens
Direitos humanos no mundo
A necessidade de cooperação internacional:
- Os Estados devem garantir que as suas políticas externas cumprem as obrigações de cooperação internacional e assistência, para evitar violações de direitos humanos fora das suas fronteiras.
- Estas obrigações devem ser consideradas em futuros tratados ou outros desenvolvimentos na área do direito internacional, nomeadamente os que concernem o envolvimento de empresas e um possível tratado sobre a proteção de pessoas em caso de desastres.
- O atual contexto global exige uma resposta que envolva todos os atores envolvidos, incluindo empresas. Nesse sentido, é fundamental que exista flexibilidade na abordagem ao Acordo sobre Aspetos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Acordo TRIPS), permitindo que os Estados alterem as suas leis de forma a cumprirem as suas obrigações para com a proteção da saúde pública. O impacto da sua ação nesse sentido pode garantir a suspensão das proteções à propriedade intelectual que, atualmente, são um obstáculo para que mais empresas possam produzir mais vacinas contra a COVID-19.
- Da mesma forma, o apoio à operacionalização da iniciativa da Organização Mundial de Saúde para a partilha de conhecimento e tecnologia, a C-TAP, é também crucial para o aumento da produção de vacinas.
Vida, saúde e proteção social:
- Os Estados devem garantir que as vacinas contra a COVID-19 estão disponíveis e são economicamente acessíveis a todos.
- Os Estados devem ainda apoiar o desenvolvimento de um fundo de proteção social global, com base nos padrões de direitos humanos.
- Os países mais ricos e as instituições financeiras internacionais devem garantir que todos os Estados têm os recursos necessários para responder e recuperar da pandemia, incluindo através da suspensão ou anulação de dívidas.
Ambiente e direitos humanos:
- Os Estados devem submeter novas estratégias para reduzir as suas emissões a longo prazo, antes da COP26,- que definirá os objetivos de redução de emissões para 2030 e 2050 – pois é imperativo que a temperatura global não aumente mais de 1.5ºC acima dos níveis pré-industriais.
- Os países que compõem o G20 devem liderar a adoção de medidas que facilitem uma transição justa para uma economia de carbono zero, fomentar uma sociedade resiliente e colocar as pessoas e os direitos humanos no centro dessa resposta. Isto significa colocar um ponto final nos subsídios aos combustíveis fósseis, evitar resgates de empresas de aviação e de combustíveis fósseis e investir em energias renováveis de acordo com os direitos humanos.
- O G20 deve ainda garantir que todos os trabalhadores e comunidades dependentes de setores afetados pela transição para uma economia de carbono zero recebem apoio e oportunidades para trabalhos dignos, de forma a protegerem os seus meios de subsistência.
Violência de género:
- Os governos devem agir concertada e rapidamente para terminar com a repressão aos direitos das mulheres e da comunidade LGBTI, abordar a discriminação e estereótipos, e implementarem medidas concretas para atingir justiça de género.
- Devem também adotar medidas concretas para eliminar a violência de género, abordar as suas causas, incluindo a discriminação, promover abordagens centradas nos sobreviventes e garantir direitos sexuais e reprodutivos para todos.
Repressão da dissidência:
- Os Estados devem fortalecer e financiar as instituições e mecanismos das Nações Unidas para que estas possam, de facto, prevenir, responder e responsabilizar a repressão à dissidência e outras formas de violação de direitos humanos.
- Todos os Estados devem cooperar com Tribunal Penal Internacional em todos os processos em curso e alertar para a interferência política.
- Todos os Estados com ligação ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas devem atuar para terminar com padrões enraizados de repressão à dissidência.
- Todos os governos devem suspender imediatamente a exportação de equipamento de controlo de massas para aplicação da lei e outros, sobretudo onde existam provas do seu uso indevido ou onde há probabilidade de serem usados para violações de direitos humanos.
MAIS SOBRE O RELATÓRIO ANUAL 2020
O relatório da Amnistia Internacional sobre o Estado dos Direitos Humanos Mundo em 2020, analisa 149 países e territórios e é, atualmente, a análise mais abrangente de direitos humanos no mundo.
Além da análise específica de cada país, é também feito uma avaliação global e apresentado um panorama geral de cada uma das regiões mundiais.
Pode aceder à totalidade do relatório anual, disponível em quatro línguas diferentes, ou consultar partes específicas do relatório, que disponibilizamos em português.
Também pode consultar os relatórios anuais da Amnistia Internacional referentes aos anos compreendidos entre 2011 e 2020, aqui.
Direitos humanos em Portugal
Portugal é um dos 149 países analisados pela Amnistia Internacional no seu relatório anual.
Sem grandes surpresas, o impacto da pandemia no país fez-se sentir em todas as esferas. Contudo, a resposta do governo português à COVID-10 expôs as lacunas existentes nos direitos à saúde e habitação, deixando ainda em situação de maior fragilidade alguns dos grupos mais vulneráveis da sociedade.
Ao longo do ano, acompanhámos e denunciámos a forma como a pandemia agravou as dificuldades e as fragilidades que já existiam, tendo, inclusive, apelado ao estabelecimento de um Comité de Monitorização de Direitos Humanos, que permitisse criar mecanismos de escrutínio redobrados para avaliar as consequências das respostas à pandemia de COVID-19.
Já em março de 2020, o o diretor-executivo da Amnistia Internacional Portugal, Pedro A. Neto, afirmou “Estamos perante uma situação inédita, que exige medidas particulares. Em primeiro lugar, é necessário parar a propagação do vírus e proteger, especialmente, as pessoas mais vulneráveis. Neste esforço, lembramos que os direitos humanos devem ser o princípio de toda e qualquer medida”.
Mas a ausência de uma resposta centrada em direitos humanos teve consequências. Destacamos as seguintes:
- Foram conhecidas as dificuldades e carências de equipamentos de proteção individual adequados para os profissionais de saúde;
- Aumentou a vulnerabilidade de grupos específicos, já anteriormente sinalizados, como as pessoas idosas ou as pessoas que se encontram privadas da sua liberdade em estabelecimentos prisionais;
- Pelo menos nove famílias foram despejadas, sem acomodação alternativa, apesar da suspensão de execuções de hipotecas e despejos;
- As respostas para as pessoas em situação de sem-abrigo foram insuficientes e de fraca qualidade;
- Apesar de ter sido concedido, temporariamente, o acesso a cuidados de saúde e segurança social para pessoas com autorizações de residência pendentes, não foram cumpridos os objetivos de recolocação de menores não acompanhados da Grécia. De 500, chegaram apenas 72.
- Foi registada a morte de um cidadão ucraniano, no seguimento de um espancamento por agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto de Lisboa, que expôs falhas na proteção de pessoas durante os procedimentos fronteiriços.
- O Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) expressou preocupação quanto à discriminação racial continuada contra comunidades ciganas e pessoas de ascendência africana, bem como com os baixos níveis de denúncia, acusação e condenação relativamente à violência de género no país.
Chegou a nossa vez
Inspirados pelos milhões de pessoas que lideraram através do exemplo, dos movimentos que em todo o mundo exigem justiça e o fim das desigualdades, queremos que 2021 seja o ano em que vencemos a pandemia, em que ninguém é esquecido e onde, de facto, existe a possibilidade de um futuro seguro para todos.
O primeiro passo é garantir que ninguém é esquecido.
Se as empresas farmacêuticas partilhassem o seu conhecimento e tecnologia, outras poderiam produzir vacinas contra a COVID-19 e poderíamos pôr um fim à pandemia de forma ainda mais rápida. Recorde o nosso apelo global, dirigido às principais empresas farmacêuticas, para que cumprissem as suas obrigações de direitos humanos e todas as pessoas pudessem ter uma oportunidade real e justa no acesso à vacina contra a COVID-19.
Apelo enviado
Leia aqui o texto que foi enviado às principais empresas farmacêuticas no início de 2022.
LerExmos./as. Senhores/as.,
As empresas farmacêuticas e os institutos de investigação desempenham um papel crucial no respeito ao direito à saúde. Todas as pessoas no mundo devem ter acesso à vacina contra a COVID-19, independentemente de quem são ou de onde vivem.
Em novembro de 2020, um grupo de especialistas de direitos humanos das Nações Unidas declarou que as empresas “deveriam evitar causar ou contribuir para os impactos adversos no direito à vida e à saúde, ao invocarem os seus direitos à propriedade intelectual e priorizando os lucros económicos”.
Padrões internacionais como os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas são claros nesta matéria: as empresas têm a responsabilidade de respeitar os direitos humanos onde quer que operem. Além disso, as Diretrizes de Direitos Humanos para as Empresas Farmacêuticas das Nações Unidas (Diretrizes para as Empresas Farmacêuticas) indicam que as empresas têm a “responsabilidade de alargar o acesso aos medicamentos a todas as pessoas” e devem desenvolver e implementar políticas sobre o acesso a medicamentos, considerando todos os mecanismos ao seu dispor, para garantir que estes são financeiramente acessíveis ao máximo número de pessoas possível. Em linha com estas considerações, as Diretrizes para as Empresas Farmacêuticas recomendam que “como parte da sua política de acesso a medicamentos, a empresa deve emitir licenças voluntárias abertas e não-exclusivas com vista a aumentar o acesso a todos os medicamentos, em países de baixo e médio rendimento… Devem também incluir qualquer transferência de tecnologia necessária. Os termos das licenças devem ser divulgadas.”
As vacinas contra a COVID-19 foram desenvolvidas a um ritmo impressionante e, de certa forma, as empresas farmacêuticas fizeram história. Mas se apenas uma fração da população mundial pode ter acesso às vacinas que produzem, então milhões em todo o mundo estão em risco de serem deixados para trás. Se partilharem o vosso conhecimento e tecnologia, e permitirem que outras empresas produzam vacinas, então mais pessoas podem ser vacinadas e de forma mais célere. Só iremos sair desta pandemia quando mais pessoas, em todo o mundo, forem vacinadas. Têm aqui uma oportunidade para fazer a diferença para controlar esta crise e ajudar a salvar as vidas de mais milhões de pessoas.
Em maio de 2020, a Costa Rica e a OMS lançaram a COVID-19 Technology Access Pool (C-TAP), como uma plataforma de partilha voluntária para as empresas reunirem todos os dados, conhecimentos, materiais biológicos e propriedade intelectual e, posteriormente, licenciarem a produção e transferência de tecnologia para outros potenciais produtores.
Nós, os/as abaixo-assinados/as, apelamos a todos os que desenvolvem vacinas a estarem à altura das suas responsabilidades de direitos humanos e a partilharem o seu conhecimento e tecnologia juntando-se à C-TAP, para que mais pessoas possam ter uma oportunidade real e justa de ter acesso à vacina.
Atentamente,