18 Agosto 2021

A COVID-19 sublinhou a necessidade de abordar urgentemente os problemas sérios e de longa data enfrentados pelo sistema de saúde da Somália, após anos de subinvestimento e num contexto de dívida paralisante, refere a Amnistia Internacional num novo relatório.

O relatório intitulado “Acabámos De Ver Morrer os Pacientes de COVID-19” (em inglês, “We Just Watched Covid-19 Patients Die”), mostra como a pandemia expôs as múltiplas fraquezas do sistema de saúde da Somália.

A investigação baseia-se em entrevistas a mais de 40 pessoas, nomeadamente 33 profissionais de saúde e trabalhadores humanitários, funcionários do governo, especialistas em finanças e alívio da dívida, bem como na análise dos orçamentos e políticas governamentais, e ainda nas informações do Ministério das Finanças da Somália.

A pesquisa conclui que o acesso a instalações sanitárias para pacientes da COVID-19 foi severamente limitado, com um único hospital na capital, Mogadíscio, a gerir todos os casos relacionados com a pandemia em toda a região centro-sul durante a primeira vaga de infeções.

“A resposta do governo da Somália à pandemia foi totalmente inadequada – caraterizada por uma grave falta de ventiladores, escassez de oxigénio e acesso praticamente inexistente a serviços de ambulância, que resultam de anos de negligência e incapacidade de investir em cuidados de saúde”, disse Deprose Muchena, diretor da Amnistia Internacional para a África Oriental e Austral.

“Agora que a Somália é elegível para perdão de dívida, as autoridades devem assegurar que parte suficiente das receitas e futuras subvenções é usada para investir significativamente na melhoria da prestação de cuidados de saúde”

Deprose Muchena

“Agora que a Somália é elegível para perdão de dívida, as autoridades devem assegurar que parte suficiente das receitas e futuras subvenções é usada para investir significativamente na melhoria da prestação de cuidados de saúde, tanto nas zonas rurais como urbanas.”

 

Infraestruturas de saúde pobres e pouco investimento

A Somália, cuja história recente é marcada pelo conflito armado e instabilidade política, além de ser um dos países mais endividados do mundo, está atrás de outros em muitos indicadores de saúde, como o acesso a cuidados de saúde reprodutiva, materna e infantil. A mortalidade infantil do país é, atualmente, a mais alta do mundo. Em 2017, tinha uma proporção de um cirurgião por cada 1.000.000 pessoas. Estima-se que apenas 15% das pessoas em zonas rurais tenham acesso a cuidados médicos.

Uma análise da Amnistia Internacional aos orçamentos governamentais do país, entre 2017 e 2021, mostrou que o orçamento médio atribuído à saúde e a projetos relacionados com a mesma era de apenas 2%. No mesmo período, o orçamento médio atribuído ao setor da segurança, incluindo aos ministérios da defesa e da segurança interna, foi de 31% do total do orçamento de Estado.

 

Resposta totalmente inadequada à COVID-19 e profissionais de saúde sob ameaça

Oficialmente, houve 15.294 casos confirmados da COVID-19, e 798 óbitos comprovados, mas os números reais são, presumivelmente, bem mais elevados, tendo em conta a limitada capacidade de testagem e as fragilidades na notificação e no registo de óbitos.

Isto é confirmado pelo Diretor-Geral da Saúde do país, Dr. Mohamed Mohamud Ali, que partilhou à Amnistia Internacional acreditar que o número de mortes pela COVID-19 é muito superior ao estimado. “A testagem foi muito limitada. Só quem conseguiu chegar às instalações de saúde e foi testado está incluído nos dados oficiais do governo. O número é apenas uma ponta do icebergue, muitos mais foram infetados e morreram em casa”, disse Mohamed.

Os profissionais de saúde revelaram como o país se debateu, desde o primeiro dia, com a resposta sanitária durante a pandemia. Uma enfermeira revelou à Amnistia Internacional: “No início, nós baralhámo-nos. Estava tudo uma confusão. Não tínhamos nada com que tratar os pacientes. Não havia oxigénio, nem camas de UCI, nem ventiladores. Nós víamos apenas os pacientes morrer, foi muito triste.”

“Ainda me lembro dos seus rostos. Estou triste por não termos conseguido obter oxigénio para salvar as suas vidas”

médico somali

Um médico veterano disse que muitos pacientes positivos para a COVID-19 também morreram devido ao fornecimento insuficiente de oxigénio: “Tivemos de usar uma única cânula nasal de oxigénio para múltiplos pacientes. Houve um dia em que tivemos quatro homens idosos numa ala, todos eles precisavam de oxigénio, mas todos morreram no espaço de 10 minutos. Ainda me lembro dos seus rostos. Estou triste por não termos conseguido obter oxigénio para salvar as suas vidas.”

Ao analisar as carências vividas durante as primeiras semanas de março de 2020, um especialista de laboratório do Ministério da Saúde disse à Amnistia Internacional: “Não tivemos qualquer equipamento de testagem durante algumas semanas… inicialmente, estávamos a enviar amostras para o Quénia para testagem, até que tivemos a primeira máquina PCR, como doação da empresa chinesa Alibaba.”

Para piorar a situação, os profissionais de saúde tiveram de trabalhar num ambiente de segurança desafiante e, por vezes, altamente perigoso. Por exemplo, na povoação de Gololey, região de Shabelle Central, oito profissionais de saúde numa maternidade foram raptados e mortos por homens armados e vestidos com uniformes militares e policiais, em maio de 2020. As autoridades nomearam uma comissão para investigar o incidente mas, até à data, as conclusões não foram tornadas públicas e nenhum perpetrador foi levado à justiça.

Atualmente, o país enfrenta uma escassez de vacinas, o que lhe dá pouca hipótese de lutar contra a contínua propagação da COVID-19. No início de agosto, apenas 0.6% da população estava completamente vacinada. Dos 33 profissionais de saúde que a Amnistia Internacional entrevistou para este relatório, embora todos tivessem tido a oportunidade de serem vacinados, 19 deles recusaram-no – uma situação emblemática da hesitação vacinal generalizada no país, que é, em parte, o resultado de falta de informação pública.

 

Perdão de dívida como um recurso adicional: uma oportunidade que não deve ser desperdiçada

Apesar dos desafios, o governo, com a ajuda de parceiros internacionais como a Organização Mundial de Saúde, tem feito esforços para reforçar o sistema de saúde, como a adoção de um plano no sentido da Cobertura Universal de Saúde (CUS). O governo deve continuar a desenvolver estes esforços.

No entanto, abriu-se uma importante “janela de oportunidade” para recursos adicionais significativos que o governo deve aproveitar. Recentemente, a Somália atingiu o ponto de decisão para perdão de dívida sob a Iniciativa Países Pobre Altamente Endividados (PPAE). Isto significa que é agora elegível para apoio orçamental adicional e financiamento de subvenções.

A Amnistia Internacional está a apelar ao Governo Federal da Somália para afetar uma parcela suficiente de quaisquer recursos de perdão de dívida e novas subvenções para melhorar o direito à saúde, em linha com o seu plano CUS e as suas obrigações internacionais de direitos humanos. Para assegurar cuidados de saúde adequados para todos, tanto o governo como a comunidade internacional, com assistência financeira e técnica, têm um papel a desempenhar.

“A COVID-19 causou a morte de milhões em todo o mundo, mas a triste realidade é que, na Somália, muitas destas mortes eram evitáveis. O país não pode permitir-se continuar a repetir estas falhas”

Deprose Muchena

“A COVID-19 causou a morte de milhões em todo o mundo, mas a triste realidade é que, na Somália, muitas destas mortes eram evitáveis. O país não pode permitir-se continuar a repetir estas falhas. O governo deve usar quaisquer mais-valias do perdão de dívida para aumentar significativa e progressivamente os orçamentos da saúde para além da afetação de 2% pré-COVID-19, com o objetivo de atingir finalmente os 15% do orçamento anual, em linha com a Declaração de Abuja, que subscreveu”, disse Deprose Muchena.

“As pessoas na Somália têm o direito de aceder a instalações sanitárias adequadas, independentemente da zona onde vivem no país, incluindo cuidados de saúde e tratamentos críticos, que continuam a ser desesperadamente necessário na luta contra a COVID-19.”

 

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