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Forças russas torturaram e deportaram civis da Ucrânia
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Crianças separadas das famílias após transferência forçada
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Pessoas idosas, pessoas com deficiência e crianças lutam para deixar a Rússia
Um novo relatório da Amnistia Internacional publicado esta quinta-feira detalha a forma como as autoridades russas deportaram e transferiram à força civis de áreas ocupadas da Ucrânia, uma ação que representa um crime de guerra e possíveis crimes contra a humanidade.
O relatório – “Uma caravana prisional: a transferência ilegal de civis na Ucrânia e os abusos durante a ‘Filtragem’” – baseia-se em entrevistas a 88 pessoas das regiões de Mariupol, Kharkiv, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia, que relatam como as forças russas transferiram à força civis de zonas ocupadas pela Rússia na Ucrânia, através de processos de rastreio abusivos – conhecidos como “Filtragem” –, que na maior parte das vezes resultaram em detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos.
São ainda apresentadas provas de como crianças foram separadas das suas famílias durante o processo de ‘Filtragem’, o que representa a violação do Direito Internacional Humanitário.
“Separar as crianças das suas famílias e forçar as pessoas a transferirem-se para centenas de quilómetros das suas casas é mais uma prova do grande sofrimento que a invasão russa infligiu aos civis da Ucrânia”, disse Agnès Callamard, Secretária-Geral da Amnistia Internacional.
“Ninguém foi poupado, nem mesmo crianças. A deplorável tática russa de transferência forçada e deportação é um crime de guerra. A Amnistia Internacional acredita que isto deve ser investigado como um crime contra a humanidade”
Agnès Callamard
“Desde o início da sua guerra de agressão contra a Ucrânia, ela própria um crime internacional, as forças russas atacaram indiscriminadamente e mataram ilegalmente civis, destruíram inúmeras vidas e dilaceraram famílias. Ninguém foi poupado, nem mesmo crianças. A deplorável tática russa de transferência forçada e deportação é um crime de guerra. A Amnistia Internacional acredita que isto deve ser investigado como um crime contra a humanidade”, sublinhou.
Agnés Callamard defende ainda que “todas as pessoas transferidas à força e ainda detidas ilegalmente devem ser autorizadas a sair” das zonas onde se encontram, “e todos os responsáveis pela prática destes crimes devem ser responsabilizados”.
Os relatos publicados no novo relatório da Amnistia Internacional expõem os maus-tratos a que os civis ucranianos foram sujeitos durante o processo de ‘Filtragem’, incluindo espancamentos, eletrochoques e ameaças de morte. Foram também documentados casos de negação de alimentos e água e de detenção em condições de sobrelotação.
Recorde-se que a Amnistia Internacional considera ilegal a anexação da Rússia ao território ucraniano, incluindo a chamada “República Popular de Donetsk” (DNR), na parte controlada pela Rússia da Região de Donetsk.
Mariupol funcionou como ponto de transferência forçada
No início de março de 2022, a cidade de Mariupol foi cercada por forças russas, tornando as evacuações da população impossíveis. A cidade foi sujeita a bombardeamentos quase constantes, e os civis não tinham acesso a água corrente, aquecimento ou eletricidade.
Apesar disso, milhares de pessoas conseguiram escapar da cidade para áreas controladas pelo governo ucraniano em meados de março, mas à medida que a Rússia ocupava gradualmente a cidade, as suas forças militares transferiram à força alguns civis para bairros sob o seu domínio, impedindo-os de utilizarem outras rotas de fuga. Os civis disseram que se sentiram coagidos a entrarem em autocarros de “evacuação” para a “República Popular de Donetsk”.
Milena, de 33 anos, contou à Amnistia Internacional a sua experiência enquanto tentava fugir de Mariupol, revelando que foi informada pelas forças russas de “que só era possível ir para a DNR ou para a Rússia”. “Uma jovem perguntou sobre outras possibilidades de evacuação, dando o exemplo do território ucraniano, mas um soldado russo disse-lhe… ‘Se não fores para a DNR ou à Federação Russa, ficarás aqui para sempre´”.
O marido de Milena, um antigo fuzileiro naval da marinha ucraniana, foi detido pouco depois, ao atravessar a fronteira para a Rússia, e ainda não foi libertado.
Transferência forçada de crianças e de grupos em risco
As leis do conflito armado proíbem a transferência individual ou forçada em massa de pessoas protegidas do território ocupado. Em vários casos, crianças sem pais e em fuga para o território ocupado pela Ucrânia foram detidas em postos de controlo militares russos e transferidas sob a custódia das autoridades controladas pela Rússia em Donetsk.
Um rapaz de 11 anos foi separado da sua mãe durante a ‘filtragem’, procedimento provocado pelas forças russas que viola o Direito Internacional Humanitário. O rapaz e a mãe foram capturados e detidos pelos militares em Mariupol, em meados de abril.
“Eles levaram a minha mãe para outra tenda, onde foi interrogada. Depois, disseram-me que me iam tirar da minha mãe. Não disseram para onde a iam levar e desde essa altura que não tenho notícias dela”.
O relatório da Amnistia Internacional também detalha a transferência forçada para Donetsk de todos os 92 residentes de uma instituição estatal para idosos e pessoas com deficiência em Mariupol.
A organização documentou vários casos em que pessoas idosas da Ucrânia pareciam ter sido colocadas numa instituição russa em áreas ocupadas pela Rússia após terem fugido das suas casas. Tal prática viola os direitos da pessoa, e dificulta a sua saída da Rússia ou o reagrupamento com familiares na Ucrânia ou noutro lugar.
Nas zonas ocupadas pelas autoridades russas, várias pessoas admitiram que se sentiram pressionadas a solicitar a cidadania russa, revelando que os seus movimentos eram restritos. O processo de obtenção da cidadania russa foi simplificado para crianças alegadamente órfãs ou sem cuidados parentais, e para algumas pessoas com deficiência. Este procedimento destinava-se a facilitar a adoção destas crianças por famílias russas, em violação do direito internacional.
Processos de rastreio abusivos com detenções e tortura
Os civis da Ucrânia que fugiram ou foram transferidos para áreas ocupadas pela Rússia ou até para o território russo foram por várias vezes forçados através de um processo de rastreio abusivo ao entrar na DNR, ao atravessar a fronteira para a Rússia, e também ao deixar a Rússia para um país terceiro. Este processo viola os seus direitos à privacidade e integridade física.
Nos pontos de ‘Filtragem’, os funcionários tiraram fotografias de pessoas, recolheram as suas impressões digitais, inspecionaram e invadiram a informação dos seus telemóveis e forçaram alguns homens a despir-se até à cintura
A Amnistia Internacional registou sete casos em que pessoas sofreram tortura e outros maus-tratos durante a detenção. Um caso envolveu uma mulher de 31 anos, outro um rapaz de 17, e cinco eram homens na casa entre os 20 e os 30 anos.
Vitalii, de 31 anos, foi detido quando tentou sair de Mariupol num autocarro de evacuação a 28 de Abril. Depois de soldados russos terem declarado que havia um problema com a sua documentação, foi forçado a entrar num autocarro com vários outros homens. Foi conduzido a Dokuchaevsk, uma cidade próxima de Donetsk, e colocado numa cela com 15 homens, antes de ser levado para interrogatório.
“Ataram-me as mãos com fita adesiva e puseram-me um saco na cabeça e fita adesiva à volta do pescoço… Depois disseram: ‘Conta-nos tudo… Diz-nos onde serves, que base?’… [Quando eu disse que não era um soldado] começaram a bater-me com muita força nos rins… Eu estava de joelhos, a maior parte deles estava a pontapear-me. Quando me levaram de volta para a garagem, disseram: ‘Faremos isto contigo todos os dias'”.
A organização documentou outros casos que equivalem a desaparecimentos forçados ao abrigo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e aos crimes de guerra de confinamento ilegal, tortura e tratamento desumano.
Hussein, um estudante de 20 anos do Azerbaijão, foi detido quando fugia de Mariupol para Zaporizhzhia, em meados de Março, e esteve preso durante quase um mês. Foi acusado de ser um membro do exército ucraniano e espancado enquanto era interrogado.
Hussein foi ameaçado de execução e espancado todos os dias, até a apenas alguns dias antes da sua libertação, a 12 de abril.
“A Rússia e as forças controladas pela Rússia devem cessar imediatamente os seus violentos abusos contra os detidos”, refere Agnès Callamard.
“O Gabinete do Procurador do Tribunal Penal Internacional e outras autoridades relevantes devem investigar estes crimes abomináveis, incluindo os cometidos contra vítimas de grupos de risco. Todos os responsáveis pela deportação e transferência forçada, bem como pela tortura e outros crimes de direito internacional cometidos durante a ‘filtragem’, devem enfrentar a justiça”.
Metodologia
A Amnistia Internacional entrevistou 88 mulheres, homens e crianças da Ucrânia, para a elaboração do relatório. Na altura das entrevistas, apenas um dos entrevistados não, se encontrava em zonas controladas pelo governo ucraniano ou estava num país terceiro na Europa.
Responsabilização por crimes de guerra
A Amnistia Internacional tem documentado crimes de guerra e outras violações do Direito Internacional Humanitário cometidos durante a guerra de agressão da Rússia à Ucrânia, desde o início do conflito. Todos os resultados da Amnistia Internacional estão disponíveis no relatório em baixo.
A organização tem apelado repetidamente aos membros das forças e funcionários russos responsáveis pela agressão contra a Ucrânia e pelas violações a serem responsabilizados pelos seus atos, e tem saudado a investigação em curso do Tribunal Penal Internacional na Ucrânia. Uma responsabilização abrangente na Ucrânia exigirá os esforços concertados da ONU e dos seus órgãos, bem como iniciativas a nível nacional de acordo com o princípio da jurisdição universal.
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