28 Março 2022

 

  • Ao propagarem falsas promessas de uma recuperação justa da COVID-19 com vista a enfrentar desigualdades profundamente enraizadas, os líderes mundiais pactuaram com gigantes empresariais para acumular poder e lucro
  • Fracasso absoluto da comunidade global em gerir os crescentes conflitos fez agravar esta situação
  • O seu impacto tem prejudicado as comunidades mais marginalizadas do mundo, como as de África, da Ásia e da América Latina, refere a Amnistia Internacional

Em 2021, os países ricos pactuaram com as gigantes empresariais para enganar as pessoas com slogans vazios e falsas promessas de uma recuperação justa da pandemia da COVID-19, numa das maiores traições dos nossos tempos, mencionou hoje a Amnistia Internacional, no lançamento da sua avaliação anual dos direitos humanos no mundo.

O relatório “Amnistia Internacional 2021/22: O Estado dos Direitos Humanos no Mundo” conclui que estes Estados, em conjunto com as grandes empresas, aprofundaram a desigualdade global. O relatório detalha as causas fundamentais, como a ganância corporativa prejudicial e o egoísmo nacional abusivo, bem como a negligência da saúde e das infraestruturas públicas por parte dos governos de todo o mundo.

“O ano de 2021 deveria ter sido de cura e recuperação. Em vez disso, tornou-se terreno fértil para desigualdades mais profundas e maior instabilidade, um legado cáustico para os próximos anos”, afirmou Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“O ano de 2021 deveria ter sido de cura e recuperação”

Agnès Callamard

“Líder após líder prometeu ‘reconstruir melhor’ para fazer face às desigualdades enraizadas que agravaram o impacto da pandemia. Em vez disso, desempenharam uma trágica fábula de traição e ganância, num secreto plano conjunto com grandes empresas. Enquanto o mundo inteiro foi afetado, foram as comunidades mais marginalizadas, incluindo as da linha da frente da pobreza endémica, que suportaram o peso das consequências”.

 

Sucessos das vacinas posto em causa pelo nacionalismo egoísta e pela ganância corporativa

A rápida implementação de vacinas contra a COVID-19 pareceu ser uma verdadeira solução e vitória científica, trazendo esperança quanto ao fim da pandemia para todos.

No entanto, apesar da produção ter sido suficiente para vacinar toda a população mundial em 2021, menos de 4% das pessoas que vivem em países de baixo rendimento tinham sido totalmente vacinadas no final do ano.

“Nas cimeiras do G7, G20 e COP26, com destaque num palco global, líderes políticos e económicos dedicaram palavras vãs a políticas que poderiam gerar uma mudança profunda no acesso às vacinas, reverter o subinvestimento na proteção social e combater o impacto das alterações climáticas. Os dirigentes das grandes empresas farmacêuticas e tecnológicas trouxeram discursos sobre responsabilidade corporativa. Naquele que era um momento decisivo, o cenário era propício à recuperação e a uma mudança genuinamente significativa para um mundo mais igualitário”, sublinhou Agnès Callamard.

“No entanto, esta oportunidade foi desperdiçada e regressou-se às políticas e práticas impulsionadoras de maior desigualdade. Os membros do “Clube mais exclusivo do mundo” fizeram promessas em público, renunciando às mesmas em privado.”

Estados ricos, tais como os Estados-membros da UE, o Reino Unido e os EUA acumularam mais doses de vacinas do que as necessárias, enquanto fechavam os olhos cada vez que as grandes farmacêuticas priorizavam os lucros em vez das pessoas, recusando partilhar a sua tecnologia para viabilizar uma distribuição mais ampla de vacinas. Em 2021, a Pfizer, a BioNTech e a Moderna projetaram lucros assombrosos de até 54 mil milhões de dólares, mas forneceram menos de 2% das suas vacinas a países de baixo rendimento.

Legenda: Staff e apoiantes da Amnistia Internacional apoiantes apelam à Pfizer e à Bionetch para ajudarem a pôr fim à desigualdade das vacinas. Novembro de 2021.

 

As grandes empresas farmacêuticas não foram os únicos gigantes empresariais a prejudicar a recuperação da pandemia em prol do lucro. Empresas de redes sociais como o Facebook, o Instagram e o Twitter proporcionaram espaço para a desinformação sobre a COVID-19, permitindo o crescimento da hesitação das pessoas em vacinar-se. Alguns líderes políticos também disseminaram informação falsa, alimentando a desconfiança e o medo para seu próprio ganho político.

“As empresas de redes sociais permitiram que os seus lucrativos algoritmos espalhassem desinformação nociva sobre a pandemia, priorizando o sensacionalismo e a discriminação sobre a verdade”, relembrou Agnès Callamard.

“A dimensão dos seus lucros, obtida através da desinformação, e o impacto que esta teve na vida de milhões de pessoas significa que estas empresas têm contas a prestar.”

 

População marginalizada atingida de forma mais severa pelas respostas à pandemia

Enquanto muitos países do Sul Global suportaram as consequências do conluio entre gigantes empresariais e governos ocidentais, a devastação foi agravada pela rutura dos sistemas de saúde e de apoio económico e social, devido ao peso de décadas de negligência. Em nenhum outro lugar isto foi sentido de forma mais clara e cruel do que em África, motivo pelo qual a Amnistia Internacional lança hoje o seu relatório a partir da África do Sul.

Com menos de 8% da população do continente totalmente vacinada no final de 2021, África detém a taxa de vacinação mais baixa do mundo, ameaçada pela insuficiência dos fornecimentos do mecanismo COVAX, do Fundo Africano de Aquisição de Vacinas e de doações bilaterais. As populações foram deixadas expostas à medida que as campanhas de vacinação fraquejavam ou falhavam em países com sistemas de saúde já inadequados.

Na África do Sul, aproximadamente 750.000 crianças tinham abandonado a escola em maio, três vezes acima do número pré-pandemia. No Vietname, as mulheres trabalhadoras migrantes foram particularmente atingidas, o que lhes trouxe insegurança alimentar e incapacidade de satisfazer outras necessidades básicas. Na Venezuela, a pandemia piorou a emergência humanitária pré-existente: 94.5% da população vivia em pobreza de rendimentos e 76.6% em pobreza extrema.

“Em muitos países do mundo, as pessoas já marginalizadas pagaram o peço mais elevado pelas escolhas de políticas deliberadas de uma minoria privilegiada”

Agnés Callamard

“Em muitos países do mundo, as pessoas já marginalizadas pagaram o peço mais elevado pelas escolhas de políticas deliberadas de uma minoria privilegiada. O direito à saúde e à vida foram violados em larga escala, milhões de pessoas tiveram de se debater para sobreviver, muitas perderam as suas casas, crianças foram afastadas da escola, a pobreza aumentou”, continuou Agnès Callamard.

“O fracasso global em dar uma resposta abrangente à pandemia também proporcionou novos conflitos e maiores injustiças. A pobreza crescente, a insegurança alimentar e a instrumentalização da pandemia pelos governos para reprimir a dissidência e protestos consolidaram-se em 2021, alimentados pelo nacionalismo das vacinas e pela ganância dos países mais ricos.”

“A pobreza crescente, a insegurança alimentar e a instrumentalização da pandemia pelos governos para reprimir a dissidência e protestos consolidaram-se em 2021”

Agnés Callamard

 

Multiplicação de conflitos face a uma resposta internacional hesitante

Em 2021, surgiram novos conflitos e persistiram outros por resolver no Afeganistão, no Burkina Faso, na Etiópia, em Israel e nos Territórios Palestinianos Ocupados, na Líbia, em Myanmar e no Iémen, com as partes em conflito a violarem o Direito Internacional de Direitos Humanos e o Direito Internacional Humanitário. No seu rescaldo, os civis tornaram-se danos colaterais, milhões foram deslocados, milhares foram mortos, centenas foram sujeitos a violência sexual, e os sistemas de saúde e económicos já frágeis foram levados ao limite.

Legenda: Palestinianos bloqueados por forças israelitas enquanto tentam impedir a demolição da sua casa, localizada na “Área C” da Cisjordânia ocupada, onde Israel mantém o controlo total sobre o planeamento e construção. Foto de HAZEM BADER

 

Legenda: Estudantes iemenitas assistem às aulas na sua escola destruída na cidade de Taez, a 30 de agosto de 2021. Foto de AHMAD AL-BASHA

 

A inação global na abordagem aos crescentes conflitos aumentou a instabilidade e devastação. A ineficácia da resposta internacional a estas crises foi mais evidente com a paralisia do Conselho de Segurança da ONU, que não agiu face às atrocidades em Myanmar, às violações de direitos humanos no Afeganistão, ou aos crimes de guerra na Síria. Esta inércia vergonhosa, a paralisia continuada de órgãos multilaterais e a ausência de responsabilização de Estados poderosos, ajudaram a abrir o caminho para a invasão da Ucrânia pela Rússia, que tem violado, de forma flagrante, o Direito Internacional.

“Muitos poucos casos geraram a necessária resposta internacional; muito poucos viram a justiça e a responsabilização ser providenciadas. Em vez disso, os conflitos expandiram-se. Prolongando-se no tempo, os seus impactos agravaram-se. Os números e a diversidade de partes intervenientes aumentaram. Abriram-se novos cenários de conflito. Foram testadas novas armas. Aumentou o número de pessoas mortas e feridas. A vida foi desvalorizada. A estabilidade global foi levada ao limite”, explica Agnès Callamard.

 

Quando mais precisávamos de vozes independentes, a tendência retrógrada para silenciar a dissidência cresceu

A tendência global para silenciar vozes críticas e independentes ganhou fôlego em 2021, à medida que os governos implementavam inúmeras ferramentas e táticas. Defensores de direitos humanos, ONG, meios de comunicação social e líderes da oposição foram alvos de detenções ilegítimas, tortura e desaparecimento forçado, muitos deles sob a cortina de fumo da pandemia.

Em 2021, pelo menos 67 países introduziram novas leis para restringir a liberdade de expressão, de associação ou de reunião. Nos EUA, pelo menos 6 Estados introduziram mais de 80 projetos de lei que limitam a liberdade de reunião, enquanto o governo do Reino Unido propôs a Lei de Polícia, Crime, Sentença e Tribunais, que limitaria drasticamente o direito à liberdade de reunião pacífica, nomeadamente através da expansão dos poderes policiais.

As tecnologias digitais sub-reptícias foram mais utilizadas como armas. Na Rússia, o governo recorreu ao reconhecimento facial para realizar detenções em massa de manifestantes pacíficos. Na China, as autoridades ordenaram aos fornecedores de serviços de internet que cortassem o acesso a páginas que “colocassem em perigo a segurança nacional”, e bloquearam aplicações nas quais eram discutidos temas controversos, tais como Xinjiang e Hong Kong. Em Cuba, no Essuatíni, no Irão, em Myanmar, no Níger, no Senegal, no Sudão do Sul e no Sudão, as autoridades recorreram a bloqueios e interrupções da internet para impedir as pessoas de partilharem informação sobre a repressão e de se organizarem em resposta à mesma.

“Em vez de gerarem espaço para a discussão e debate fundamentais sobre a melhor forma de enfrentar os desafios de 2021, muitos Estados redobraram os esforços para silenciar vozes críticas”, salientou Agnès Callamard.

 

Se aqueles no poder querem uma falsa reconstrução, devemos fazer frente à sua traição

Se aos que estavam no poder em 2021 faltava ambição e imaginação para lidar com uma das mais graves ameaças à humanidade, não pode dizer-se o mesmo sobre as pessoas que estes deveriam ter representado.

Na Colômbia, manifestantes saíram às ruas depois de o governo ter decidido aumentar os impostos, mesmo quando as pessoas tinham dificuldades para alimentar as suas famílias durante a pandemia. Na Rússia, as manifestações da oposição prosseguiram, apesar das detenções arbitrárias e perseguições em massa. Na Índia, os agricultores protestaram contra novas leis que prejudicariam o seu sustento.

Legenda: A polícia colombiana com os manifestantes num protesto contra o governo do Presidente  Ivan Duque em Medellín, Colômbia, a 2 de junho de 2021. Foto de JOAQUIN SARMIENTO

 

Legenda: Polícia russa detém um homem durante uma manifestação de apoio ao líder da oposição Alexei Navalny na cidade de Vladivostok, a 31 de janeiro de 2021. Foto de Pavel KOROLYOV

 

Ativistas juvenis e indígenas em todo o mundo pediram contas aos seus líderes pela sua inação face à crise climática. Organizações da sociedade civil, incluindo a Amnistia Internacional, desenvolveram campanhas bem sucedidas pelo reconhecimento do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável. Várias ONG apresentaram processos judiciais estratégicos inovadores e queixas-crime contra empresas multinacionais como a Nike, Patagonia e C&A por serem cúmplices com o trabalho forçado na região chinesa de Xinjiang.

Legenda: Travessia do leito do rio Mandrare em Madagáscar, frequentemente seco entre abril e outubro. 30 de agosto de 2021. Foto de RIJASOLO

 

Num grande exemplo de cooperação, o Projeto Pegasus – uma colaboração de mais de 80 jornalistas, com apoio técnico da Amnistia Internacional – revelou que o spyware do Grupo israelita NSO tinha sido usado contra chefes de Estado, ativistas e jornalistas no Azerbaijão, na Hungria, em Marrocos, no Ruanda e na Arábia Saudita.

“Apesar das promessas e compromissos em sentido contrário, em quase todas as ocasiões os líderes e as grandes empresas optaram por uma abordagem não transformadora, escolhendo reforçar as desigualdades sistemáticas por trás da pandemia, em vez de as derrubar. Ainda assim, cidadãos de todo o mundo deixaram bem claro que querem um mundo mais justo, fundamentado nos direitos humanos”, salientou Agnès Callamard.

“A resistência palpável e persistente dos movimentos populares em todo o mundo é um farol de esperança”

Agnés Callamard

“A resistência palpável e persistente dos movimentos populares em todo o mundo é um farol de esperança. Determinados e destemidos, o seu apelo é por um mundo mais igualitário. Se os governos não reconstroem melhor – se aparentemente pretendem uma falsa reconstrução – então restam-nos poucas opções. Devemos combater todas as suas tentativas para silenciar as nossas vozes e devemos enfrentar todas as suas traições. É por isso que, nas próximas semanas, iremos lançar uma campanha global de solidariedade com os movimentos populares, que exige respeito pelo direito ao protesto. Temos de construir e reforçar a solidariedade global, mesmo que os nossos líderes não o façam.”

“Temos de construir e reforçar a solidariedade global, mesmo que os nossos líderes não o façam”

Agnés Callamard

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