O ano de 2021, que deveria ter sido de recuperação, foi de profundas desigualdades e instabilidade.

O legado deixado para os anos seguintes será desafiante.

Mas, tal como milhões em todo o mundo demonstraram ao longo de 2021:
ficar em silêncio não é uma opção.

 

 

 

O ano de 2021 foi um ano repleto de promessas, sonhos e de esperança no futuro: imaginámos o fim da pandemia da COVID-19, com a garantia de que todas pessoas pudesse ter uma oportunidade real e justa no acesso às vacinas, e ambicionámos a reconstrução de um mundo melhor, mais inclusivo e solidário. Contudo, quase todas as promessas ficaram por cumprir e vários governos aproveitaram o contexto para, mais do que nunca, reforçarem as suas posições de poder.

Assim, na análise da Amnistia Internacional sobre o estado dos direitos humanos no mundo em 2021, destacamos as seguintes

  1. Saúde e as desigualdades;
  2. Conflitos e repressão a vozes críticas;
  3. A esperança oferecida pelos movimentos de pessoas comuns.

O ano de 2021 deveria ter sido de cura e recuperação. Em vez disso, tornou-se terreno fértil para desigualdades mais profundas e maior instabilidade, um legado cáustico para os próximos anos.

Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional

 

Direitos humanos no mundo

 

1. SAÚDE E DESIGUALDADES

Líderes políticos e grandes empresas foram cúmplices em ações que privilegiaram os lucros e não as vidas das pessoas. Traíram as promessas de uma recuperação justa da pandemia e, em praticamente todas as oportunidades, ficaram do lado errado da história, atuando para aprofundar as desigualdades que já existiam anteriormente à pandemia. Em vários momentos assistimos ao esquecimento do que representam os sucessos das vacinas contra a COVID-19, aprofundando ainda mais as desigualdades junto das populações mais marginalizadas, que já eram particularmente afetadas pelos sistemas económicos e de saúde previamente em vigor.

Mais sobre saúde e desigualdades em 2021

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  • Falsas promessas: Foram várias as promessas feitas em defesa de uma reconstrução global mais justa e melhor, em fóruns nacionais e internacionais (como o G7 e o G20), a que se somaram apoios à produção e distribuição de vacinas contra a COVID-19 para com os países mais pobres do mundo. O mesmo se verificou com as grandes empresas tecnológicas e farmacêuticas que  mentiram sobre a responsabilidade empresarial. Para além da pandemia, os líderes políticos falharam em estar à altura do desafio apresentado pelas alterações climáticas. Os diferentes Estados nem chegaram a conseguir acordar num compromisso de limitar o aquecimento global a 1,5º C, condenando milhões de pessoas, em particular no Hemisfério Sul, a dificuldades no acesso a água e a ondas de calor extremas.
  • Ganância e cumplicidade: As grandes empresas farmacêuticas continuaram a privilegiar os lucros em vez das suas responsabilidades de direitos humanos. Por exemplo, a Pfizer/BioNTech e a Moderna projetaram lucros de 54 mil milhões de dólares, mas distribuíram menos de 2% das suas vacinas para países de baixo rendimento. De forma semelhante, também a Sinovac e a Sinopharm (empresas farmacêuticas chinesas) apenas distribuíram 0,5% e 1,5% respetivamente. Assistimos ainda à rejeição da partilha de tecnologia e conhecimento para produção de mais vacinas, com destaque para a negação total ao levantamento temporário de direitos de propriedade intelectual dessas mesmas vacinas. A par das empresas farmacêuticas, também as grandes empresas tecnológicas privilegiaram algoritmos que, muitas vezes, destacavam conteúdo sensacionalista em detrimento de factos, com vista a maximizar os lucros vindos de anúncios a esses conteúdos. Desta forma, grandes empresas como o Facebook, Instagram e Twitter, criaram espaço fértil para a proliferação de notícias falsas relacionadas com a pandemia, permitindo um aumento das teorias de conspiração e de receio em relação às vacinas.
  • Marginalização de pessoas mais vulneráveis: Milhões de pessoas, particularmente no Hemisfério Sul, têm sofrido as consequências da cumplicidade entre as grandes empresas e os governos ocidentais. Essas dificuldades somaram-se às previamente identificadas de anos de negligência e de injustos sistemas económicos, sociais e de saúde. Em nenhuma parte do mundo isto foi tão sentido como em África onde, no final de 2021, menos de 8% da população do continente tinha sido vacinada.

 

 

2. CONFLITOS E REPRESSÃO A VOZES CRÍTICAS

O sofrimento de milhões de pessoas ao longo de 2021 foi aprofundado pela incapacidade da comunidade internacional em atuar de forma eficaz, com destaque para os países em posição de poder. Assistimos à emergência de novos conflitos, outros continuaram, e , em comum, todos deixaram milhões de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. De acordo com o ACNUR, a agência das Nações Unidas para os Refugiados, a meio de 2021 já se registavam 26,6 milhões de refugiados e 4,4 milhões de requerentes de asilo em todo o mundo. Pessoas a quem a comunidade internacional também falhou, e a quem não foi prestado o apoio necessário ou a proteção a que tinham direito (muitas foram sujeitas a pushbacks, tortura e violência sexual).

Apesar do diálogo e do debate terem sido identificados como as melhores formas de resolver vários destes desafios, muitos Estados acabaram por aumentar os seus esforços para silenciarem vozes críticas, usando muitas vezes o argumento do combate às informações falsas sobre a COVID-19. Multiplicaram-se as tendências de silenciamento e repressão a quem ousasse criticar a atuação das autoridades: defensores de direitos humanos, órgãos de comunicação social, líderes da oposição, entre outros, foram alvo de detenções arbitrárias, tortura, desaparecimentos forçados e outras violações de direitos humanos.

 

Mais sobre repressão da dissidência em 2021

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Sobre conflitos armados:

  • África: Conflitos nos Camarões, Burkina Faso, República Central Africana, República Democrática do Congo, Etiópia, Mali, Moçambique, Níger, Somália e Sudão do Sul ficaram marcados pelas migrações forçadas de milhões de pessoas e pela existência de potenciais crimes de guerra e de outras graves violações do Direito Internacional Humanitário.
  • Ásia: No Afeganistão, após a tomada de poder por parte dos Talibãs, a situação humanitária no país deteriorou-se ainda mais, com milhões de pessoas (incluindo mais de 3 milhões de crianças) em risco de sofrerem de subnutrição.
  • Médio Oriente e Norte de África: Na Síria, as forças governamentais bloquearam o acesso a comida, água e serviços essenciais no norte do país, e continuaram a impedir o acesso de agências humanitárias das Nações Unidas ao sul e norte do país. Cerca de 100 000 pessoas fugiram do país ao longo de 2021.
  • Global: O fracasso da comunidade internacional em abordar estes múltiplos conflitos provocou ainda mais instabilidade e devastação. A ineficácia da resposta a estas crises, foi particularmente evidente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, já que falhou na resposta às atrocidades cometidas em Myanmar, no Afeganistão e até na Síria. Esta inação, a contínua paralisia de organismos multilaterais e a ausência de responsabilização por parte dos Estados mais poderosos, abriram caminho para a invasão russa da Ucrânia.

Sobre a repressão a vozes críticas:

  • Global: Foram registadas novas leis, em pelo menos 67 países, com vista a restringir a liberdade de expressão e o direito à associação e reunião pacífica.
  • África: Autoridades no Congo, Níger, Zâmbia, e noutros países neste continente, recorreram a leis sobre difamação para intimidar e silenciar críticos.
  • Ásia: Mais de 200 órgãos de comunicação social foram encerrados no Afeganistão, após a tomada de poder por parte dos Talibãs. Já em Hong Kong, a Lei de Segurança Nacional permitiu violações de direitos humanos a uma escala sem precedentes, com o desaparecimento de, pelo menos, 61 organizações de sociedade civil.
  • Europa: A Bielorrússia utilizou o falso argumento de que existia uma bomba a bordo de um avião, para poder prender um jornalista exilado que seguia a bordo. No Reino Unido, uma proposta de lei apresentada pelo governo permitirá, se implementada, reduzir a liberdade de reunião pacífica, aumentando os poderes da polícia. Na Rússia, o governo recorreu à técnicas de reconhecimento facial para prender manifestantes pacíficos.
  • Médio Oriente e Norte de África: Em pelo menos 84 países, dos 154 analisados pela Amnistia Internacional, foram detidos defensores de direitos humanos. Desses 84, 17 são na região do Médio Oriente e Norte de África (composta por 19 países).
  • Américas: O continente americano permanece como um dos lugares mais perigosos do mundo para defensores de direitos humanos, com mortes registadas em, pelo menos, oito países. Nos EUA, pelo menos 36 Estados introduziram mais de 80 novas leis que visam limitar a liberdade de reunião pacífica.

 

 

3. A ESPERANÇA OFERECIDA PELOS MOVIMENTOS DE PESSOAS COMUNS 

É fundamental continuarmos o caminho iniciado por milhares de pessoas que, de forma pacífica, resistem, persistem e não aceitam cruzar os braços. A multiplicação de movimentos civis, compostos por pessoas comuns, tem desafiado líderes políticos em todo o mundo, sobretudo face à cumplicidade entre o abuso das grandes empresas e os vários governos. Para cada uma destas pessoas, ficar em silêncio não foi uma opção.

Mais sobre os movimentos civis em 2021

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  • Global: Registaram-se manifestações pacíficas em mais de 80 países.
  • Ásia: Na Índia, milhares de agricultores manifestaram-se contra 3 novas leis que colocavam em causa a sua subsistência. O governo indiano acabou por recuar e as leis não avançaram.
  • Europa: Na Rússia, decorreram várias manifestações, mesmo apesar dos enormes riscos de detenções arbitrárias e perseguição.
  • Américas: Milhares de pessoas ocuparam as ruas na Colômbia após o governo ter decidido aumentar os impastes durante uma grave crise social, agravada pela pandemia. Face à enorme resposta da população, o governo recuou na sua decisão.
  • Outros exemplos: Várias ONG, incluindo a Amnistia Internacional, conseguiram pressionar o Conselho de Segurança das Nações Unidas a reconhecerem o direito de todas as pessoas a um ambiente saudável, limpo e sustentável, e a criarem Relatores Especiais para a área de direitos humanos e ambiente, e para os direitos humanos no Afeganistão. O Projeto Pegasus – numa colaboração entre especialistas de direitos humanos e jornalistas – revelou como o grupo israelita NSO vigiou Chefes de Estado, ativistas e jornalistas na Hungria, Azerbeijão, Marrocos, Ruanda e Arábia Saudita. O ano de 2021 também ficou marcado pelas avultadas multas (as maiores de sempre) contra empresas tecnológicas, devido à violação de leis de privacidade e proteção de dados. Foram multadas empresas como a Amazon (multa de 746 milhões de euros), WhatsApp (225 milhões de euros) e Grindr (6,34 milhões de euros).

 

 

MAIS SOBRE O RELATÓRIO ANUAL 2021

 

O relatório da Amnistia Internacional sobre o Estado dos Direitos Humanos Mundo em 2021, analisa 154 países e territórios e é, atualmente, a análise mais abrangente de direitos humanos no mundo.

Além da análise específica de cada país, é também feito uma avaliação global e apresentado um panorama geral de cada uma das regiões mundiais. Em 2021, foi notória a significativa repressão aos direitos à liberdade de expressão, associação e reunião pacífica.

Pode aceder à totalidade do relatório anual, disponível em quatro línguas diferentes, ou consultar partes específicas do relatório, que disponibilizamos em português.

Também pode consultar os relatórios anuais da Amnistia Internacional referentes aos anos compreendidos entre 2011 e 2021, aqui.

Direitos humanos em Portugal

 

Portugal é um dos 154 países analisados pela Amnistia Internacional no seu relatório anual.

Portugal continua a registar avanços na defesa e promoção dos direitos humanos, mas existe ainda caminho a percorrer. Das várias áreas analisadas ao longo de 2021, destacam-se as seguintes:

  • Liberdade de expressão e reunião pacífica;
  • Direitos de refugiados e migrantes;
  • Discriminação (destacando a existência de discriminação múltipla, através da combinação de dois ou mais fundamentos para discriminação, como a etnia, idade, orientação sexual, género, religião, ou outro);
  • Violência contra as mulheres;
  • Direito à habitação;
  • Direitos dos reclusos.

Mais sobre os direitos humanos em Portugal

 

Esperança no futuro

 

Para que todas as promessas de um futuro mais justo e inclusivo sejam cumpridas, a Amnistia Internacional apresenta um conjunto de propostas:

  1. As empresas farmacêuticas e os Estados devem garantir um acesso igual e justo às vacinas contra a COVID-19, incluindo apoio à proposta de suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas, testes e tratamentos. Além disso, os países com maiores rendimentos devem atuar para distribuirem os seus excedentes de vacinas contra a COVID-19 para países de rendimento mais baixo. Simultaneamente, as empresas farmacêuticas devem dar prioridade às entregas nos países onde estas vacinas são mais precisas, e partilharem o seu conhecimento e tecnologia para que a produção e distribuição sejam aumentadas e facilitadas. Por fim, as empresas tecnológicas também devem cumprir com as suas responsabilidades de direitos humanos, nomeadamente no que diz respeito a uma resposta eficaz contra a divulgação de notícias falsas.
  2. É urgente uma reforma das Nações Unidas e, em particular, do Conselho de Segurança, que não deve poder continuar a privilegiar os interesses políticos em detrimento da proteção das vidas e direitos de milhões de pessoas. O abuso do poder de veto deve terminar, sobretudo em situações de enorme urgência humanitária.
  3. Os governos devem cumprir as suas obrigações para com todas as pessoas que procuram proteção internacional. Já em 2022, testemunhámos a forma rápida e decisiva sobre como foi possível acolher e proteger pessoas que fugiam da Ucrânia. Agora, é fundamental que os Estados apliquem os mesmos padrões de direitos humanos a todas as outras pessoas que fogem de outras crises no mundo.

A resistência palpável e persistente dos movimentos populares em todo o mundo é um farol de esperança. (…) Temos de construir e reforçar a solidariedade global, mesmo que os nossos líderes não o façam.

Agnés Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional

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