4 Agosto 2022

 

  • Bases militares instaladas em zonas residenciais, incluindo escolas e hospitais
  • Ataques lançados a partir de zonas residenciais
  • Estas violações dos direitos humanos não justificam de nenhum modo os ataques indiscriminados e sistemáticos da Rússia a alvos residenciais e a civis, que já mataram e feriram inúmeros civis e arrasaram localidades

 

A Amnistia Internacional revelou esta quarta-feira que as forças ucranianas colocaram, desnecessariamente, civis em perigo ao estabelecerem algumas bases militares e sistemas operacionais de armamento em áreas residenciais sem contexto de defesa imediata e direta dessas áreas, à medida que repeliam a invasão das forças russas, que teve início em fevereiro.

O Direito Internacional Humanitário exige que todas as partes de um conflito evitem localizar, na medida do possível, objetivos militares dentro ou perto de áreas densamente povoadas. Outras obrigações para proteger os civis dos ataques incluem remover os civis das proximidades de objetivos militares e emitir um aviso eficaz de ataques que possam afetar a população.

Estas táticas ucranianas violam o Direito Internacional Humanitário, uma vez que colocam desnecessariamente em risco a vida de civis.

“Temos documentado um padrão operacional das forças ucranianas, que coloca civis em risco e viola as leis da guerra quando operam em áreas povoadas” [podendo localizarem-se noutras áreas], disse Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional, lembrando que “estar numa posição defensiva não isenta os militares ucranianos de respeitarem o Direito Internacional Humanitário”.

Entre abril e julho, os investigadores da Amnistia Internacional analisaram ataques russos nas regiões de Kharkiv, Donbas e Mykolaiv, inspecionando os locais dos ataques, entrevistando sobreviventes, testemunhas e familiares de vítimas e realizando análises à deteção sensorial remota de armas.

Ao longo das investigações, a organização conclui que as forças ucranianas se estabeleceram em edifícios civis de 19 cidades, com o Laboratório de Provas de Crise da Amnistia Internacional a corroborar os incidentes através da análise de imagens de satélite.

Os casos aqui mencionados não são, por isso, locais de combate urbano ou de linha da frente, tais como em Mariupol, onde as forças ucranianas e russas lutaram em zonas próximas.  Concordamos que em tais casos seria muito mais difícil avaliar se os soldados tinham outras alternativas viáveis.

A maioria das áreas residenciais onde os militares operavam situava-se a poucos quilómetros de distância das linhas da frente de combate, sendo que existiam alternativas viáveis que evitariam colocar os civis em perigo – tais como bases militares ou áreas densamente arborizadas nas proximidades, ou outras estruturas mais afastadas das áreas residenciais. Nos casos que documentou, a Amnistia Internacional não tem conhecimento de que os militares ucranianos que se localizavam em estruturas civis pediram aos civis, ou os ajudaram, para evacuar edifícios próximos, ainda que os pedidos de evacuação sejam recorrentemente feitos pelo governo ucraniano e que em algumas localidades os militares ucranianos tenham feito evacuações gerais. No entanto, nos locais em que visitámos civis e recolhemos testemunhos, e a que se refere este comunicado, estes não tinham sido evacuados nem tinham recebido qualquer assistência para o fazer.

 

Ataques indiscriminados por forças russas

Muitos dos ataques russos documentados pela Amnistia Internacional nos últimos meses foram realizados de forma indiscriminada, com munições de fragmentação proibidas internacionalmente, ou com outras armas explosivas com efeitos de grande escala. Noutros casos, foram utilizadas armas teleguiadas com diferentes níveis de precisão; em alguns casos, as armas eram suficientemente precisas para atingir edifícios específicos.

Alguns ataques russos a zonas civis estavam ocupadas por militares ucranianos, mas a organização conclui que a Rússia cometeu crimes de guerra em várias zonas de várias cidades do país, arrasando locais em que não foram encontradas provas de que as forças ucranianas estavam instaladas em zonas residenciais. Desde 24 de fevereiro a organização publicou já vários comunicados e relatórios a documentar estes crimes de guerra realizados pelas forças militares russas e a exigir investigação detalhada pelas autoridades competentes sobre os crimes de guerra realizados pelas forças militares russas em Bucha:

 

Ataques ucranianos a partir de zonas povoadas

Sobreviventes e testemunhas dos ataques russos nas regiões de Donbas, Kharkiv e Mykolaiv declararam aos investigadores da Amnistia Internacional que os militares ucranianos tinham estado a operar perto das suas casas na altura dos ataques, expondo as áreas residenciais à retaliação das forças russas.

A mãe de um homem de 50 anos, morto num ataque com roquets numa aldeia a sul de Mykolaiv, a 10 de Junho, disse à Amnistia Internacional: “Os militares ficaram numa casa ao lado da nossa e o meu filho levava frequentemente comida aos soldados. Implorei-lhe várias vezes que ficasse longe de lá, porque temia pela sua segurança. Nessa tarde, quando o ataque aconteceu, o meu filho estava no pátio, onde foi morto”. Os investigadores da Amnistia Internacional encontraram equipamento militar e uniformes na casa ao lado.

Mykola vive num bairro de Lysychansk (Donbas), que foi repetidamente atingido por ataques russos que mataram pelo menos um idoso, e declarou à Amnistia Internacional: “Não compreendo porque é que os nossos militares estão a disparar das cidades e não do campo”.

Investigadores da Amnistia Internacional testemunharam soldados a utilizarem um edifício residencial a cerca de 20 metros da entrada do abrigo utilizado pelos residentes, onde o idoso foi morto.
Numa cidade da região do Donbas, a 6 de Maio, as forças russas utilizaram munições de fragmentação num bairro em que as forças ucranianas operavam sistemas de artilharia. Os estilhaços danificaram as paredes da casa onde Anna, de 70 anos, vive com o seu filho e a sua mãe, de 95 anos.

“Os estilhaços atravessaram as portas de casa quando eu estava lá dentro. A artilharia ucraniana estava perto do meu campo… Os soldados estavam atrás do campo, atrás da casa… Eu vi-os a entrar e a sair desde que a guerra começou”.
No início de Julho, um agricultor foi ferido quando as forças russas atacaram um armazém agrícola na zona de Mykolaiv. Horas após o ataque, investigadores da Amnistia Internacional testemunharam a presença de militares e veículos ucranianos na zona de armazenamento de cereais, e testemunhas confirmaram que os militares tinham estado a utilizar o armazém, localizado do outro lado da estrada, a partir de uma quinta onde vivem e trabalham civis.
Enquanto os investigadores da Amnistia Internacional examinavam os danos em edifícios residenciais e edifícios públicos adjacentes, em Kharkiv e em aldeias em Donbas e a leste de Mykolaiv, ouviram disparos a partir dos postos militares ucranianos das proximidades.

Em Bakhmut, vários residentes disseram à Amnistia Internacional que os militares ucranianos tinham estado a utilizar um edifício a apenas 20 metros do outro lado da rua de um edifício residencial. A 18 de Maio, um míssil russo atingiu a frente do edifício, destruindo parcialmente cinco apartamentos e danificando edifícios próximos. Kateryna, uma residente que sobreviveu ao ataque, afirmou: “Eu não compreendi o que aconteceu. Havia janelas partidas e muito pó na minha casa… Fiquei aqui porque a minha mãe não queria sair. Ela tem problemas de saúde”.

Três residentes disseram à Amnistia Internacional que, antes do ataque, as forças ucranianas tinham usado uma estrutura em frente ao edifício bombardeado, e que dois camiões militares estavam estacionados em frente de outra casa que foi danificada quando o míssil explodiu. Investigadores da Amnistia Internacional encontraram sinais de presença militar dentro e fora do edifício, incluindo sacos de areia e coberturas de plástico preto cobrindo as janelas, bem como equipamento de primeiros socorros.

 

Bases militares em hospitais

Os investigadores da Amnistia Internacional testemunharam forças ucranianas a utilizarem hospitais como bases militares em cinco locais diferentes. Em duas cidades, dezenas de soldados estavam a descansar e a comer refeições em hospitais. Numa outra cidade, os soldados estavam a disparar a partir de perto de um hospital.
Um ataque aéreo russo, a 28 de Abril, feriu dois funcionários de um laboratório médico num subúrbio de Kharkiv, depois de as forças ucranianas terem instalado uma base no complexo.
A utilização de hospitais para fins militares é uma violação do Direito Internacional Humanitário. Os hospitais são locais reservados ao tratamento de pessoas, não devendo ter outros fins.

 

Bases militares em escolas

Os militares ucranianos estabeleceram ainda bases em escolas, nas cidades e aldeias de Donbas e na área de Mykolaiv. As escolas foram temporariamente fechadas desde o início do conflito, no entanto, na maioria dos casos os edifícios escolares estavam localizados perto de bairros civis, zonas residenciais.

Em 22 das 29 escolas visitadas, os investigadores da Amnistia Internacional encontraram soldados a utilizarem as instalações, bem como provas de atividade militar – incluindo a presença de munições descartadas, pacotes de ração do exército e veículos militares. As forças russas atingiram muitas das escolas utilizadas pelas forças ucranianas. Em pelo menos três cidades, após o bombardeamento russo, os soldados ucranianos deslocaram-se para outras escolas próximas, colocando os bairros circundantes em risco de ataques semelhantes.

Numa cidade a leste de Odesa, a Amnistia Internacional testemunhou um amplo padrão de soldados ucranianos a utilizarem áreas civis para alojamento, incluindo a colocação de veículos blindados debaixo de árvores em bairros residenciais, e a utilização de duas escolas localizadas em zonas residenciais densamente povoadas. Os ataques russos perto das escolas mataram e feriram vários civis entre Abril e finais de Junho – incluindo uma criança e uma idosa mortas num ataque com roquetes à sua casa, a 28 de Junho.

Em Bakhmut, as forças ucranianas estavam a usar um edifício universitário como base militar, que foi atingido por um ataque russo a 21 de maio, matando, alegadamente, sete soldados. A universidade é adjacente a um edifício residencial que foi danificado no ataque, ao lado de outras casas civis, a cerca de 50 metros de distância. Os investigadores da Amnistia Internacional encontraram os destroços de um veículo militar no pátio do edifício da universidade que foi bombardeada.

O Direito Internacional Humanitário não proíbe especificamente as partes de um conflito de se estabelecerem em escolas que não estejam em atividade. Contudo, os militares têm a obrigação de evitar utilizar escolas que estejam perto de casas ou edifícios residenciais, colocando vidas em risco, a não ser que exista uma necessidade militar imperiosa. Se o fizerem, devem avisar os civis e, se necessário, ajudá-los a evacuar os edifícios. Isto não parece ter acontecido nos casos examinados pela Amnistia Internacional.

Os conflitos armados prejudicam seriamente o direito das crianças à educação, e o uso militar das escolas pode resultar numa destruição que priva ainda mais as crianças deste direito depois de terminada a guerra. A Ucrânia é um dos 114 países que subscreveram a Declaração de Escolas Seguras, um acordo para proteger a educação durante conflitos armados, que permite às partes fazerem uso de escolas abandonadas ou evacuadas apenas quando não existe alternativa viável.

Estas violações dos direitos humanos não justificam de nenhum modo os ataques indiscriminados e sistemáticos da Rússia a alvos residenciais e a civis, que já mataram e feriram inúmeros civis e arrasaram localidades.

 

Recomendação

“O governo ucraniano deve imediatamente assegurar-se de que localiza as suas forças longe das áreas povoadas, ou deve evacuar os civis das áreas onde os militares estão a operar. Os militares nunca deveriam utilizar hospitais para se dedicarem à guerra, e só deveriam utilizar escolas ou lares civis como último recurso, quando não existem alternativas viáveis”, disse Agnès Callamard.

A 29 de julho de 2022, a Amnistia Internacional contactou o Ministério da Defesa ucraniano relativamente aos resultados da investigação. Entre estes resultados estavam coordenadas de GPS precisas dos locais em que vimos militares ucranianos localizados em estruturas civis, como hospitais e escolas, para que pudessem fazer as suas próprias verificações. Na altura desta publicação, a organização ainda não tinha obtido uma resposta.

 

*Neste comunicado temos o cuidado de não revelar locais específicos ou as imagens de satélite correspondentes, pois isso teria potencialmente dado às forças russas um roteiro para futuros ataques. Também as nossas testemunhas não são nomeadas ou dadas indicações concretas da sua localização com vista à sua proteção.

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