23 Março 2023

 

  • Relatório Anual da Amnistia Internacional referente ao ano de 2022 realça a existência de dois pesos e duas medidas em todo o mundo em matéria de direitos humanos e a incapacidade da comunidade internacional de se unir de forma consistente na proteção dos direitos humanos e dos valores universais
  • A resposta robusta do Ocidente à agressão da Rússia contra a Ucrânia contrasta fortemente com a falta de atuação relativa a violações graves de direitos humanos por parte de alguns dos seus aliados, como Israel, Arábia Saudita e Egito 
  • Estados falham na proteção e respeito dos direitos das mulheres e da liberdade de manifestação pacífica, que têm sido continuamente ameaçados
  • Com a Declaração Universal dos Direitos do Homem a completar 75 anos, a Amnistia Internacional apela à criação de um sistema internacional com normas que se fundamentem no respeito e cumprimento dos direitos humanos, de aplicação global

 

Em 2022, a invasão russa à Ucrânia resultou em numerosos crimes de guerra, provocou uma crise energética e alimentar global e procurou abalar o já enfraquecido sistema multilateral. A guerra em solo ucraniano expôs a hipocrisia dos Estados ocidentais que se mobilizaram contra a agressão do Kremlin, mas toleraram ou foram cúmplices de graves violações de direitos humanos cometidas noutros países, reforça a Amnistia Internacional no lançamento da sua avaliação anual do estado dos direitos humanos no mundo.

O Relatório 2022/23 da Amnistia Internacional: O Estado dos Direitos Humanos no Mundo verificou que a duplicidade de critérios e as respostas inadequadas às violações de direitos humanos ocorridas a nível global fomentaram a impunidade e a instabilidade. Alguns exemplos são o silêncio ensurdecedor sobre as violações de direitos humanos na Arábia Saudita, a falta de atuação no Egito e a recusa em confrontar o sistema de apartheid de Israel contra os palestinianos.

O relatório destaca também as estratégias de braço de ferro da China para reprimir a ação internacional sobre os crimes contra a humanidade praticados no país, e o fracasso das instituições globais e regionais – prejudicadas pelo interesse próprio dos seus Estados-membros – em responder adequadamente aos conflitos, o que provocou a morte de milhares de pessoas em países como a Etiópia, Myanmar e Iémen. 

“A invasão russa da Ucrânia é um exemplo arrepiante do que pode acontecer quando os Estados pensam que podem transgredir o direito internacional e violar os direitos humanos sem consequências pelos seus atos”, clarifica Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional.

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi criada há 75 anos, a partir das cinzas da Segunda Guerra Mundial. A sua essência é o reconhecimento universal de que todas as pessoas têm direitos e liberdades fundamentais. Mesmo que a dinâmica do poder global esteja um verdadeiro caos, os direitos humanos não podem ser perdidos na desordem. Por outro lado, são os direitos humanos que devem guiar o mundo à medida que se multiplicam os contextos cada vez mais instáveis e perigosos. Não podemos esperar que o mundo volte a arder”.

“Mesmo que a dinâmica do poder global esteja um verdadeiro caos, os direitos humanos não podem ser perdidos na desordem”

Agnès Callamard

 

Duplicidade de critérios conduz a novas violações de direitos humanos

A invasão russa à Ucrânia desencadeou uma das piores emergências humanitárias e de direitos humanos na história recente da Europa. O conflito provocou uma onda migratória, crimes de guerra no terreno, insegurança energética e alimentar a nível global, gerando ainda uma ameaça iminente da possibilidade de guerra nuclear.

A resposta foi rápida. O Ocidente impôs sanções económicas a Moscovo e enviou assistência militar para Kiev. O Tribunal Penal Internacional abriu uma investigação sobre crimes de guerra na Ucrânia. A Assembleia Geral da Nações Unidas votou para condenar a invasão da Rússia como um ato de agressão. No entanto, esta abordagem forte e necessária contrastou fortemente com as respostas a anteriores violações em grande escala por parte da Rússia e outros Estados, e com as deploráveis reações a outros conflitos, como o da Etiópia ou de Myanmar. 

 

Ucranianos no exterior de um edifício depois de ataques em Kiev a 10 de outubro de 2022. Fotografia de Sergei SUPINSKY / AFP

 

“Se esta resposta tivesse sido dada e tivesse funcionado para responsabilizar a Rússia pelos seus crimes na Chechénia e na Síria, milhares de vidas poderiam ter sido salvas nessa altura e agora – na Ucrânia e noutros locais. Em vez disso, o resultado traz mais sofrimento e devastação”, esclarece Agnès Callamard.

“O que a guerra na Ucrânia evidencia é a importância de uma ordem internacional eficaz e consistentemente aplicada, que se fundamente em normas. Todos os Estados devem intensificar os seus esforços para uma ordem renovada com a sua base em normas que alcancem todas as pessoas, em todo o mundo”.

Para os palestinianos na Cisjordânia ocupada, 2022 foi um dos anos mais mortíferos desde que as Nações Unidas (ONU) começaram a registar baixas, de forma sistemática, em 2006 –  cerca de 152 pessoas, entre as quais dezenas de crianças, foram mortas pelas forças israelitas o ano passado. As autoridades israelitas continuaram a forçar os palestinianos a abandonar as suas casas, e o governo está a lançar planos para expandir drasticamente os colonatos ilegais na Cisjordânia ocupada. Em vez de exigirem o fim do sistema de apartheid de Israel, muitos governos ocidentais optaram por atacar aqueles que o denunciavam.

Os Estados Unidos da América (EUA), enquanto grandes críticos das violações de direitos humanos na Ucrânia pelas forças russas, têm recebido dezenas de milhares de ucranianos que fogem da guerra. Por outro lado, ao abrigo de políticas e práticas racistas, expulsaram do seu território mais de 25.000 haitianos entre setembro de 2021 e maio de 2022, submetendo muitos a tortura e outros maus-tratos.

Os estados membros da União Europeia (UE) abriram as suas fronteiras aos ucranianos que fugiam da agressão russa, demonstrando que eram totalmente capazes de receber um grande número de pessoas em busca de segurança, proporcionando-lhes acesso à saúde, educação e alojamento. No entanto, muitos países europeus mantiveram as suas portas fechadas aos migrantes que procuravam escapar da guerra e repressão na Síria, no Afeganistão e na Líbia.

 

Migrantes a cobrirem-se com cobertores no barco de patrulha enquanto chegam a Itália. Fotografia de Valeria Ferraro/SOPA Images/LightRocket via Getty Images

 

“As respostas à invasão russa da Ucrânia deram-nos algumas provas do que pode ser feito quando há vontade política. Vimos condenações globais, investigações criminais, fronteiras abertas aos refugiados. Esta abordagem deve ser contemplada para lidar com todas as graves violações de direitos humanos no mundo”, reforça Agnès Callamard.

A duplicidade de critérios do Ocidente encorajou países como a China, e permitiu também que o Egito e a Arábia Saudita contornassem, ignorassem e desviassem as atenções do seu repressivo historial em matéria de direitos humanos.

Apesar das graves violações de direitos humanos, onde os crimes contra os uigures e outras minorias muçulmanas constituem crimes contra a humanidade, a China escapou à condenação internacional da Assembleia Geral, Conselho de Segurança e Conselho de Direitos Humanos da ONU.

O Conselho de Direitos Humanos da ONU instituiu um relator especial sobre a situação dos direitos humanos na Rússia e um mecanismo de investigação sobre o Irão devido às manifestações que assolaram todo o país. Em contrapartida, votou para que não se continuasse a investigar e discutir as próprias conclusões da ONU sobre os potenciais crimes contra a humanidade em Xinjiang, na China, e suspendeu uma resolução sobre as Filipinas.

“Os países não podem criticar as violações de direitos humanos num minuto e, no minuto seguinte, tolerar abusos semelhantes noutros países só porque os seus interesses estão em jogo”

Agnès Callamard

“Os Estados aplicaram a legislação de direitos humanos caso a caso, procedendo com evidente hipocrisia e recorrendo a uma duplicidade de critérios. Os países não podem criticar as violações de direitos humanos num minuto e, no minuto seguinte, tolerar abusos semelhantes noutros países só porque os seus interesses estão em jogo. Este é um comportamento inconcebível “, recorda Agnès Callamard.

“É ainda necessário que os Estados que, até ao momento, não se pronunciaram contra as violações de direitos humanos, tomem essa posição, independentemente do local onde esses abusos ocorrem. Precisamos de menos hipocrisia e cinismo, e de uma ação mais consistente, ambiciosa e fundamentada em princípios para todos os Estados, para que promovam e protejam todos os direitos”.

 

Forte repressão da dissidência por todo o mundo

Em 2022, os dissidentes russos foram levados a tribunal e os escritórios dos meios de comunicação social na Rússia foram encerrados só por fazerem referência à guerra na Ucrânia. Os jornalistas foram ainda presos em dezenas de outros países, entre os quais, o Afeganistão, a Etiópia, o Myanmar, e a Bielorrússia.

Na Austrália, Índia, Indonésia e Reino Unido, as autoridades aprovaram nova legislação  que restringia as manifestações, enquanto o Sri Lanka recorreu aos poderes estipulados em período de emergência para reduzir o número de manifestações generalizadas contra o agravamento da crise económica. A lei britânica confere amplos poderes às autoridades, como a capacidade de proibir “manifestações ruidosas”, comprometendo as liberdades de expressão e de reunião pacífica.

 

Tecnologia como ferramenta de silenciamento, repressão e desinformação

As autoridades iranianas responderam às manifestações generalizadas contra as décadas de repressão com força ilegal e recorrência de munições vivas, granadas metálicas, gás lacrimogéneo e agressões. Centenas de pessoas, incluindo dezenas de crianças, foram mortas. Em dezembro, as forças de segurança peruanas fizeram também uso da força ilegal, em especial contra os povos indígenas e camponeses, para reprimir as manifestações durante a crise política que se seguiu à destituição do ex-presidente, Pedro Castillo. A repressão foi ainda uma realidade para os jornalistas, defensores de direitos humanos e pessoas da oposição política no Zimbabué e em Moçambique.

 

Em solidariedade com a população peruana, reprimida por exercer o direito à manifestação pacífica, cem artistas partilharam 100 obras de arte para marcar os últimos cem dias de manifestações generalizadas no país. Obra de Diablada Gráfica

 

Em resposta às crescentes ameaças ao direito à manifestação pacífica, a Amnistia Internacional lançou uma campanha global em 2022 para confrontar e impedir os esforços intensificados dos Estados no enfraquecimento do direito fundamental à liberdade de reunião pacífica. Enquanto parte desta campanha, a organização apela à adoção de um Tratado de Comércio Livre de Tortura que proíba a produção e o comércio de equipamento inerentemente abusivo de aplicação da lei e que controle o comércio de equipamento de aplicação da lei que é utilizado, com frequência, para tortura ou outros maus-tratos.

 

Desrespeito e riscos para os direitos das mulheres 

O ano 2022 teve um impacto acentuado nos direitos das mulheres. O Supremo Tribunal dos EUA revogou uma garantia constitucional de longa data do direito ao aborto, colocando em causa outros direitos humanos, como o direito à vida, à saúde, à privacidade, à segurança e à não-discriminação de milhões de mulheres, raparigas e pessoas que podem engravidar.

No final do ano, vários estados norte-americanos tinham aprovado leis para proibir ou restringir o acesso ao aborto seguro. Por sua vez, na Polónia, várias ativistas foram processados por ajudar as mulheres a obterem pílulas abortivas. 

As mulheres indígenas continuaram a enfrentar níveis desproporcionadamente elevados de violação e outras formas de violência sexual nos EUA. No Paquistão, foram relatados vários assassinatos de mulheres por membros da família, mas o parlamento não adotou legislação sobre violência doméstica que estava pendente desde 2021. Na Índia, a violência contra as mulheres das comunidades Dalit e Adivasi, entre outros crimes de ódio, prevaleceu impune.

O Afeganistão experienciou uma deterioração significativa dos direitos das mulheres e das raparigas quanto à sua autonomia pessoal, educação, trabalho e acesso a espaços públicos, emitidos em múltiplos decretos pelos Talibãs. No Irão, a “polícia de moralidade” prendeu violentamente Mahsa (Zhina) Amini por ter parte do cabelo a descoberto por baixo do seu hijab (véu). Dias mais tarde, Mahsa Amini morreu sob custódia devido a alegados atos de tortura, o que desencadeou manifestações por todo o país nas quais foram feridas, detidas e mortas mais mulheres e raparigas.

“A vontade dos Estados em controlar os corpos das mulheres e raparigas, a sua sexualidade e as suas vidas deixa um terrível legado de violência e repressão”, salienta Agnès Callamard.

 

Ação global insuficiente contra as ameaças à humanidade 

Em 2022, as alterações climáticas, os conflitos e os impactos económicos – causados em parte pela invasão russa à Ucrânia – agravaram os riscos para os direitos humanos.

No Afeganistão, a crise económica faz com que que 97% da população viva em condições de pobreza. No Haiti, a crise política e humanitária, exacerbada pela violência generalizada de gangs, deixou mais de 40% da população a enfrentar uma situação de insegurança alimentar aguda.

O aquecimento global do planeta e as consequentes condições climáticas extremas provocaram fome e impulsionaram a propagação de doenças em vários países no Sul da Ásia e na África subsaariana, como o Paquistão e a Nigéria, onde as inundações tiveram um impacto catastrófico na vida e subsistência das pessoas e desencadearam vagas de doenças transmitidas pela água, que acabaram por matar centenas de pessoas.

 

Ahmed na cidade de Khairpur Nathan Shah, totalmente submersa pela água. As cheias no Paquistão causaram enormes prejuízos económicos e danos nas infraestruturas. Mais de 20 milhões de pessoas foram afetadas e cerca de 1.8 milhões de casas foram destruídas. Fotografia de Gideon Mendel For Action Aid/ In Pictures/Corbis via Getty Images

 

Neste contexto, os países não conseguiram agir em prol do interesse da humanidade e abordar a dependência dos combustíveis fósseis, a principal ameaça à vida tal como a conhecemos. Este fracasso coletivo foi outro exemplo evidente da fraqueza dos atuais sistemas multilaterais.

“O mundo está cercado por crises sucessivas, como os conflitos generalizados, uma economia global com demasiados Estados sobrecarregados com dívidas insustentáveis, o abuso dos impostos sobre as empresas, o armamento da tecnologia, a crise climática e a mudança de direções políticas. Não temos qualquer hipótese de sobreviver a estas crises se as nossas instituições internacionais não estiverem aptas e alinhadas para o efeito”, destaca Agnès Callamard.

 

A necessidade de consertar instituições internacionais disfuncionais 

É fundamental que as instituições e os sistemas internacionais que se destinam a proteger os direitos humanos sejam reforçados e não debilitados. O primeiro passo é que os mecanismos de direitos humanos da ONU sejam totalmente financiados, para que a responsabilização e as investigações possam prosseguir, e a justiça seja feita.

A Amnistia Internacional apela ainda à reforma do principal órgão decisório da ONU, o Conselho de Segurança, para dar voz aos países e situações que têm sido tendencionalmente ignorados, com especial foco no Sul global.

“O sistema internacional precisa de uma séria reforma para refletir sobre as prioridades atuais. Não podemos permitir que os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU continuem a exercer o seu poder de veto e a abusar dos seus privilégios de forma desmedida. A falta de transparência e eficiência no processo de tomada de decisões do Conselho deixa todo o sistema exposto à manipulação, abuso e disfuncionamento”, conclui Agnès Callamard.

No entanto, embora os governos tenham falhado em colocar os direitos humanos em primeiro lugar, foi possível sentir inspiração e esperança com o modo de atuação para os avanços nos direitos humanos que partiram de algumas pessoas que os próprios Estados deveriam ter protegido.

Na Colômbia, a persistência do ativismo pelos direitos das mulheres e a ação legal contribuíram para a decisão do Tribunal Constitucional de descriminalizar o aborto durante as primeiras 24 semanas de gravidez. No Sudão do Sul, Magai Matiop Ngong foi libertado da prisão, depois de ter sido condenado à morte em 2017, com apenas 15 anos. A sua libertação teve lugar depois de milhares de pessoas em todo o mundo terem assinado uma petição dirigida às autoridades pela sua liberdade.

Na Guatemala, o defensor dos direitos ambientais e dos povos indígenas, Bernardo Caal Xol, foi posto em liberdade condicional após quatro anos na prisão sob acusações falsas. Depois de vários anos de campanha por movimentos de mulheres em Espanha, o parlamento do país aprovou uma lei que coloca o consentimento no centro da definição legal de violação. O Cazaquistão e a Papua Nova Guiné aboliram a pena de morte.

“É fácil sentirmo-nos sem esperança face às atrocidades e violações de direitos humanos. No entanto, ao longo do último ano, as iniciativas que partiram das pessoas demonstraram que não somos impotentes”, refere Agnès Callamard.

“Nunca seremos meros espetadores quando a nossa dignidade, igualdade e liberdade é atacada”

Agnès Callamard

“Testemunhámos atos marcantes de contestação, como as mulheres afegãs a marchar contra o domínio talibã, e as mulheres iranianas reunidas publicamente sem o hijab ou a cortar o cabelo como forma de protesto contra as leis do uso obrigatório do véu”. Milhões de pessoas que têm sido oprimidas pelo patriarcado e pelo racismo, de forma sistemática, saíram às ruas para exigir um futuro melhor. Fizeram-no em anos anteriores e fizeram-no novamente em 2022. Estas ações devem recordar àqueles que permanecem no poder que nunca seremos meros espetadores quando a nossa dignidade, igualdade e liberdade é atacada”, conclui Agnès Callamard.

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